sábado, 30 de janeiro de 2016

Os desfiles das Escolas de Samba: Como tudo começou

Para muitos, o desfile das Escolas de Sambas do Rio de Janeiro é o maior espetáculo do planeta. Mas o leitor sabe como este concurso começou? 

O desenhista e compositor Antônio Nássara, em entrevista concedida a José Guilherme Mendes, da Revista "Ele e Ela", edição de janeiro de 1976,  nos ajudou: "Na época, eu era paginador do Jornal  Mundo Esportivo, dirigido por Mário Filho. Naquele tempo, praticamente, só existia futebol e remo. Eram só essas duas atividades para um jornal especializado. Quando terminava o campeonato, o jornal ficava três, quatro meses sem muito o que noticiar. Foi então que um repórter teve uma ideia genial. Foi Carlos Pimentel, um camarada altamente conhecedor dos assuntos e fatos da cidade do Rio de Janeiro, estava por dentro deste negócio de samba das escolas. Então, Mário Filho, que era um homem de enorme visão, encomendou a Pimentel entrevistas com o pessoal das Escolas de Samba. Na época, compositores como Noel, Almirante e Sinhô já eram conhecidos, mas outras figuras como Cartola, Gradim e Maciste, não. Estes últimos eram inéditos. Quem os conhecia era o Pimentel, que frequentava o Estácio, o Rio Comprido, para saber das novidades. E deu um estalo no Mário Filho: 'Pimentel, e se em vez de entrevistas, a gente fizer uma disputa entre eles?'. Naquele momento, nascia o concurso de escolas de samba".

Mário Filho pediu a Pimentel que "bolasse" uma espécie de regulamento e este escolheu os quesitos e a pontuação a serem avaliados. Assim, evolução, Porta-bandeira, bateria, harmonia e outros foram criados. O Jornal bancou um coreto na Praça Onze, sanduíches de mortadela, cerveja e salgadinhos para atrair uns julgadores. Nássara citou alguns membros deste júri que lembrou: Álvaro Moreira e sua esposa, bem como Orestes Barbosa. Pesquisando, descobrimos mais alguns destes jurados: José Lira, Fernando Costa, Raymundo Magalhães Júnior e J. Reis.

Como o rádio ainda engatinhava, os jornais eram os maiores divulgadores dos sambistas e fez com que , rapidamente, o samba criado pelo pessoal do Estácio se espalhasse por todo o Rio de Janeiro. Era o ano de 1932 e assim foi criado o Concurso de Escolas de Samba. Na oportunidade o resultado foi o seguinte:

Campeã: Estação Primeira de Mangueira
Vice- Campeãs: Segunda Linha do Estácio e Vai Como Pode
Terceira Colocada: Unidos da Tijuca

Muitas outras escolas participaram deste primeiro certame, mas , como não foram premiadas, não foram divulgadas...

É isto... um abração e até breve. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Vamos falar de Maxixe?

Falar do maxixe é tarefa um pouco complexa. Mas, instigado por alguns dos meus leitores, pus-me a recolher, aqui e ali, vídeos, textos e capítulos da minha pequena biblioteca sobre o tema. Mas como diz um dos amigos e leitores frequentes, é sempre uma diversão. Mais que diversão, já disse aqui mesmo no blogue, tenho como missão dar luz a estas histórias do choro e do samba e motivar meus leitores ao conhecimento. E o maxixe tem muita ligação com o samba. Vejamos.

Para começar, registro algumas definições. O conhecido pesquisador José Ramos Tinhorão, por exemplo, diz que o maxixe desenvolveu-se a partir do momento em que a polca, gênero musical de origem europeia e tocado nos salões da corte imperial e da alta classe média carioca, sempre ao piano, passou a ser tocada por músicos populares chamados de chorões, com a utilização de flauta, violão e oficlide, que costumavam animar festas em casas populares, em meio a valsas e mazurcas. Já Renato de Almeida, autor do livro "História da Música Popular Brasileira, sugere que o maxixe seria "uma adaptação de elementos que se fixaram num tipo novo de dança popular, com uma coreografia cheia de movimentos requebrados e violentos, muitos deles tomados de empréstimo ao batuque e ao lundu". Para Mário de Andrade, que também muito pesquisou sobre as primeiras manifestações musicais brasileiras, o maxixe teria nascido a partir da fusão do tango brasileiro e da habaneira, com a rítmica da polca, tendo ainda uma adaptação da síncope afro-lusitana.

Por estes registros, podemos afirmar que o maxixe surgiu da mistura de diversos ritmos e que ganhou notoriedade no seio popular, como uma dança, nas festas do pessoal que residia na Cidade Nova, e nos salões dos cabarés do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Creio que a polca virou maxixe, via lundu, dançado e cantado, tocado pelo pessoal dos primórdios do choro, caindo nas graças, inicialmente dos dançarinos das festas da Cidade Nova para, em seguida, espalhar-se pelas demais classes de todo o Rio de Janeiro.

Ao que parece,  a primeira apresentação do maxixe em palcos de teatro da cidade do Rio de Janeiro ocorreu em 1883, quando o ator Francisco Correia Vasques apresentou o espetáculo "Aí, Caradura!", cuja maior atração eram os trechos cantados e dançados de maxixes. E a moda pegou...daí então, alguns compositores passaram a produzir um tipo de música própria para o gosto de quem desejava dançar aquele ritmo, com letras descontraídas. 


Jocotó de Roque  V. Vieira




Jairo Severiano registra que o maxixe começou como dança. Jota Efegê, autor do livro "Maxixe: a dança excomungada", realizou talvez a maior pesquisa em jornais e revistas da época, desde 1870 para nos ajudar a entender como esta dança se tornou um gênero musical de sucesso estrondoso, e não só no Brasil. De início, os requebros sensuais e as coreografias eram dançadas ao som das habaneras e das polcas. Aos poucos os músicos submeteram estes ritmos a uma intensa sincopação,  que acabou por transformá-los no maxixe, como gênero musical. Em 1883, num chamamento para um baile do famoso Clube Democráticos, era assim anunciado: "Cessa tudo quanto a musa antiga canta  / Que no Castelo este brado se levanta / Caia tudo no maxixe, na folgança / Que com isso dareis gosto a Sancho-Pança". Castelo era o apelido do clube e Sancho-Pança o de seu secretário.

O maxixe então já "bombava" nos teatros do Rio na virada do século  XIX para o século XX,  e também começou a fazer sucesso na Europa, levado pelo baiano Antônio Lopes de Amorim Diniz, mais conhecido por "Duque", que era dentista no Brasil e virou dançarino em Paris, meio que por acaso. Um dia saiu na noite parisiense para se divertir com a atriz Maria Lino, que visitava a cidade e, já conhecedores do maxixe, dançaram primorosamente tudo que tocava com os passos do maxixe. O sucesso foi tanto que ele abriu uma escola de dança e ficou por lá ensinando. Os rudes passos levados pelo pessoal da Cidade Nova agora eram estilizados por Duque que levou o maxixe aos grandes e elegantes salões parisienses.

Em 1924, Romeu Silva fez sucesso com o maxixe "Fubá", de sua autoria, composto a partir de motivo popular, registrado como samba, mas era maxixe puro.

Nesse ano, atestando o sucesso popular do maxixe, o Jornal do Brasil publicava a seguinte nota:
"O maxixe - As pessoas habituadas a freqüentar festas sabem que há um verdadeiro delírio em certas danças contemporâneas. Aquela medida polida, aquela graça requintada, dos antigos passos, está irremediavelmente perdida. Hoje, tudo é delírio, é frenesi. No mundo inteiro, notam-se estas manifestações de dança. No Brasil, entretanto, a verificação é mais fácil de se fazer do que em qualquer outra parte. Por que? Porque nenhuma dança poderá revelar tanto quanto o maxixe essa verdadeira alucinação que se apossa do instinto dançante da humanidade, hoje em dia".

Considero Chiquinha Gonzaga uma maxixeira de primeira, embora várias de suas obras tenham sido registradas como sendo dos mais variados gêneros: corta-jaca, tango brasileiro, polca... mas cá pra nós, "Gaúcho", uma de suas peças mais populares é um maxixe...e "Não se impressione", mais conhecido como Forrobodó, também é maxixe. Mas naquela época os compositores como Donga, Sinhô e outros levavam seus maxixes por aí como sendo sambas. Foi a tônica dos  anos 1920. Obras como " Pelo Telefone", "Gosto que me enrosco", "Jura" e outras representaram bem esta fase do maxixe disfarçado de samba.


Não dá pra deixar de reconhecer que o maxixe é o parente mais próximo do samba. Foi o que abriu portas para o samba, depois, deliciosamente, modificado pela turma do Estácio.

É isso aí. Deixe seu comentário e siga o blogue! Seja curioso e busque saber mais sobre o maxixe. Um abraço e até a próxima.




sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O Reduto do Samba e dos bambas

O Bairro do Estácio, no Rio de Janeiro,  surgiu no caminho do que era chamado, nos anos 20, de Mata-Porcos, mais ou menos onde hoje é a Rua Frei Caneca. Situado entre os vizinhos bairros do Catumbi, Cidade Nova e Rio Comprido, sobe pelos morros de São Carlos e de Santos Rodrigues. Ali viviam pessoas humildes, operários, comerciários e a camada mais pobre do funcionalismo público federal e distrital.. O comércio era composto de sapateiros, lojas de tecidos, armarinhos, uma fábrica de gelo, um cinema e muitos Bares e Cafés, como o Porta Larga, o Madureira, o do Pavão, o  Apolo e o do Compadre.

Era bem no Bar do Compadre que "batiam ponto" vários dos grandes bambas que fizeram a história do samba. Entre seus frequentadores estava o radialista Evaldo Rui, embora morador da Tijuca e que, mais tarde, se tornaria também compositor. Vejamos uma descrição que fez ele à Revista da Música Popular, já em 1954, ao lembrar do Bar do Compadre: "Eram duas portas que davam para a rua do Estácio. Do lado da rua Pereira Franco ficavam as outras três. As mesas eram de mármore e no fundo tinha uma vitrola "ortofônica", com uma imagem de São Jorge acima. Eu me postava diante de suas portas, quase que em todas as tardes porque ali se reuniam os meus ídolos, como Ismael, com seu irrepreensível terno azul marinho, camisa imaculadamente branca e gravata de tricot preta. A seu lado Nílton Bastos, uma das figuras maiores do Café, com seu chapéu de feltro marrom...e eu ficava pensando o que se passava naqueles papos? Deviam estar falando de samba. Aprendi muita coisa com aquelas conversas, como a diferença entre o bom samba, o puro samba e o mau samba, o falso samba."

Note o leitor que, já naquela época, a discussão sobre o samba verdadeiro já rolava. Evaldo Rui não era um qualquer... havia composto canções românticas com Custódio Mesquita e bem mais tarde emplacaria sucessos no carnaval como "Nega Maluca", parceria com Haroldo Lobo. Percebeu que naquelas mesas do Bar do Compadre estavam surgindo sambas novos, perfeitos para serem cantados e dançados enquanto o povo caminhava pelas ruas do bairro, rumo à Praça XI, para brincar no Carnaval.

Alcebíades e Rubem, assíduos frequentadores dos bares e conversas,  fundaram em 1925 o bloco carnavalesco "A União faz a força", que saía de seu ponto de origem, no Estácio,  com 50 pessoas, mas que na altura do destino final, na Praça XI, já contava com mais de 300 foliões. Foi o embrião da "Deixa Falar", a primeira Escola de Samba, criada já em 1928. A principal novidade foi a adoção de um samba diferente daqueles com que costumavam sair os bloco até então,  e a introdução do surdo de marcação, atribuída ao próprio Bide e a cuíca, segundo muitos, introduzida por João Mina. Merece destaque a questão do novo samba.

O musicólogo Carlos Sandroni diferencia este novo padrão de samba em relação ao antigo, pela originalidade de sua sincopação, segundo ele mais rica e livre da influência do maxixe. "No maxixe a síncope está contida dentro de um tempo, enquanto que  neste novo samba criado pelo pessoal do Estácio, ela transborda de um tempo para outro", nos relata o maestro Antônio Adolfo, também um estudioso dos primeiros sambas, que gostou muito da explicação dada por Ismael Silva, numa entrevista concedida a Sérgio Cabral, em 1974: "O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava né? Aí a gente começou a fazer assim: bum bum paticumbum prugurundum...".. dizia ele que facilitava muito pro pessoal que saia no bloco...

Bide , consta também, foi quem levou o tamborim pros blocos e pra escola. Foi o primeiro a ser procurado pelo cantor Francisco Alves, a quem apresentou Ismael para formarem as parcerias e os negócios musicais...era sapateiro da Fábrica Bordallo neste tempo em que frequentava o Bar do Compadre. Mas depois dedicou-se somente à música, formando com Armando Marçal uma parceria que rendeu belas canções como "Meu Primeiro Amor", "A primeira Vez", "Que bate fundo é esse?" e "Violão Amigo", entre tantas. Juntos também participaram de inúmeras gravações e shows nas rádios, onde eram requisitados percussionistas.

Marçal e Bide

Pena que Armando Marçal tenha falecido cedo. Mas ele se foi fazendo o que mais gostava e sabia, fulminado por um colapso cardíaco em 1947, nos estúdios da RCA Victor. Bom relembrar que Armando iniciou uma geração de ótimos percussionistas da família. Quem não conheceu Nilton Marçal, seu filho, mais conhecido como Mestre Marçal? Mestre de bateria de diversas escolas, cantor, gravou excelentes discos e trabalhou durante algum tempo como comentarista das transmissões de carnaval da TV Globo. Eu mesmo tive o privilégio de falar uma vez com ele ao telefone, quando tive um estúdio de áudio, ali pelos anos 90. Pedi auxílio para um problema com a gravação dos tamborins de um samba enredo de uma escola de samba de Floripa. Estávamos, eu e meu sócio, num nó cego... os ritmistas, apesar de bons na avenida, "amarelaram" no estúdio e a gravação ficou muito ruim...Foi aí que Mestre Marçal generosamente nos ensinou: " Grava você e o seu sócio o desenho dos tamborins e sai dobrando a pista até parecer que sejam mais de dez... vai por mim meu irmão". Foi o que fizemos e deu tudo certo.

E não vamos esquecer que o filho de Mestre Marçal, portanto neto de Armando Marçal, também é um excepcional percursionista. Marçalzinho vive nos Estados Unidos há muito tempo e integrou a Banda que acompanha Pat Metheny, presente em seus inúmeros discos.

Outro talento desta turma do Estácio foi Nilton Bastos. Branco, filho de português, morava na rua Dona Zulmira, no Maracanã, mecânico do Arsenal de Guerra, frequentava o Bar do Apolo, no Estácio, diariamente, além do próprio Bar do Compadre. Era o compositor preferido do cantor Mário Reis, que gravou "O destino Deus é quem dá", e disse que , se não tivesse morrido tão cedo, vítima de uma tuberculose, Nilton Bastos teria sido um dos maiores compositores brasileiros. Mário Reis inclusive atesta que muitos sambas compostos pelo trio Nilton/Ismael/Chico Alves, foram criados, exclusivamente, por Nilton Bastos.

Vale citar ainda Aurélio Gomes, mais um destes bambas que tinha voz possante e foi responsável por puxar, no gogó, os primeiros sambas levados pela Deixa Falar. Bide reconhecia no amigo grande capacidade de improvisar versos, mas brincava dizendo que ele era incapaz de produzir um samba sozinho. Dele e de Baiaco é o grande sucesso "Arrasta a Sandália". Era soldado da Polícia Militar e malandro...espere aí? Seria possível isto...? Bem, podemos dizer que era mais malandro do que soldado, sendo amigo de Baiaco... Oswaldo Vasques, que era rufião da Zona do Mangue e intermediário do comércio de sambas da cidade.

Mais dois malandros pra finalizar... Mano Edgar, que apesar de trabalhar na Fábrica de Cigarros Souza Cruz, era muito mais conhecido como jogador e trapaceiro. Acabou assassinado numa roda de carteado na rua Joaquim Palhares, com apenas 31 anos. Almirante, cantor, radialista e autor de alguns livros afirma que Mano Edgar foi quem inspirou o estribilho do samba "Fita Amarela", um clássico de Noel Rosa. 

Terminamos com a figura mais impressionante da malandragem do Estácio. Silvio Fernandes, que apesar de negro, era conhecido como Brancura, por fazer sucesso entre as mulheres brancas que conquistava. Bravo e valentão, sabia como poucos usar a navalha numa briga. Consta como autor de alguns sambas também, como "Deixa esta mulher chorar", sucesso da dupla Francisco Alves e Mário Reis, de 1932.

Para saber mais sobre este pessoal maravilhoso do Estácio eu recomendo, entre outras obras, a leitura do livro "Uma história da música popular brasileira", de Jairo Severiano.


É isto aí amigos e amigas.. Deixe seu comentário para enriquecer ainda mais este espaço. Até a próxima. Abraços


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ismael Silva, a matriz do samba carioca

O leitor que gosta de samba, acredito, já deve ter escutado falar muito e diversas vezes  sobre aquele que é considerado por muitos como o primeiro do gênero gravado. A canção "Pelo Telefone", de Donga, foi registrada no final de 1916 e gravada no ano seguinte pela Casa Edson e gera ainda muita polêmica quanto à autoria, uma vez que teria sido uma criação coletiva, concebida nos quintais da casa da Tia Ciata, ambiente frequentado por Pixinguinha, João da Bahiana, Caninha e Sinhô, entre outros, que creio, tenham participado tanto quanto Ernesto dos Santos, o Donga, na produção. O fato é que ela tem registro de composição de Donga e de Mauro de Almeida, um jornalista que seria o letrista.

Polêmicas sobre autoria à parte, estou entre os que  consideram "Pelo Telefone" não um samba, mas um maxixe. O Samba, tal qual ficou conhecido no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo é criação do pessoal do Estácio. E os grandes compositores deste antigo bairro do Rio modificaram aquele maxixe com tamanha maestria, incluindo novos instrumentos de percussão, que a coisa pegou de vez e nasceu o verdadeiro samba. Frequentavam os bares e botecos do Largo do Estácio e da parte baixa do Morro de São Carlos, figuras como Bide, Marçal, Nílton Bastos, Heitor dos Prazeres, Baiaco, Rubens Barcellos, Brancura, Mano Edgar e Ismael Silva e foram os que primeiro produziram sambas, como hoje conhecemos. E é sobre Ismael, este extraordinário sambista,  que hoje coloco um holofote, dos mais potentes, para fazer justiça a sua obra e ao seu pioneirismo.

Sem nenhuma formação musical, Ismael, nascido em 14 de setembro de 1905, em Niterói,  viveu bastante tempo, ao contrário de outros amigos e parceiros do Estácio. Logo aos 3 anos mudou-se com a mãe para o Estácio, no Rio de Janeiro, após a morte de seu pai. Por ter vivido bastante e dada a sua importância para o samba, concedeu diversos depoimentos, muitas vezes um pouco fantasiosos sobre sua trajetória. Certa vez contou que aos sete anos de idade pedia a sua mãe que o colocasse numa escola. Dona Emília dava de ombros por acreditar que estudo era coisa pra branco e que Ismael, negro e pobre, jamais se tornaria um "doutor". Diz então nosso Ismael que matriculou-se sozinho e por conta própria numa escola e se tornou um bom aluno, alfabetizando-se rapidamente. Chegou a concluir o ginasial. Mas aos poucos o samba foi tomando seu tempo e o doutor ficou mesmo pra trás. 

Aos quatorze anos compôs seu primeiro samba, jamais gravado, chamado "Já desisti", cuja letra já mostrava seu gosto pelo jogo e pela malandragem: “Já desisti de mulher / Já desisti do trabalho / Agora só me falta / desistir do baralho”. Nesta época já dominava bem o pandeiro e o tamborim, mas não o violão. 


Acho incrível e uma sorte imensa que todos estes talentosos amigos do Estácio tenham convivido nesta mesma época. Num tempo em que o rádio começava a ter muita audiência e apareciam grandes cantores, ávidos por novas canções para a produção dos programas que surgiam como o do Casé. Um destes cantores tinha um "faro" impressionante para descobrir e fuçar as novidades da cidade. Era Francisco Alves, também o mais popular deles, que frequentava todas as rodas musicais do centro ao subúrbio e acabou chegando ao pessoal do Estácio. Ao ouvir o samba "Me faz carinhos" quis saber logo quem era o autor e, numa época em que compositor nenhum ganhava um centavo por produzir suas canções, chegou a Ismael Silva e propôs comprar a obra. Foi assim que , por 100 mil-réis, Ismael abriu mão da autoria e o samba tornou-se um enorme sucesso, gravado em 1928 pelo Chico Viola. O passo seguinte foi tornar-se parceiro exclusivo de Francisco Alves, apesar de já ter um acordo de parceria com Nilton Bastos.  O esperto cantor não se fez de rogado e topou incluir Nilton Bastos no negócio. Seriam então um trio de compositores.

Já em 1931 estoura nas ruas e no rádio o samba "Se você jurar", até hoje o mais conhecido de Ismael. Não era pra menos, o samba possui uma bela melodia, com notas em intervalos mais longas, aliada a uma característica até então jamais utilizada, que era a segunda parte terminando com acordes que preparavam a volta para a primeira. O tema já era a malandragem: "Se você jurar / que me tem amor / eu posso me regenerar / mas se é para fingir mulher / da orgia assim não vou deixar", gravada pelo duo Chico Viola e Mário Reis. Um grande sucesso que consolidou a parceria e o negócio feito anteriormente.

Lamentavelmente, em setembro deste mesmo ano, morre Nilton Bastos, vitima de uma tuberculose. Tinha apenas 32 anos e o fato deixou nosso Ismael bem triste... pensou até em se mudar do Estácio. Em sua homenagem fez dois sambas: "Ri pra não chorar " e "Adeus". Mas vejam vocês como são as coisas... em substituição a Nilton Bastos, entra no negócio de parcerias de Francisco Alves e Ismael Silva, um jovem poeta da Vila, nada menos que Noel Rosa. Só que este não topou a exclusividade. Mas o que fizeram juntos rendeu maravilhosas páginas da nossa música. Ismael diz que foram 9, mas na real, esmiuçando e pesquisando a obra de Noel, chegamos a 18 sambas, 12 deles assinados também por Francisco Alves.

O leitor pode e deve procurar ouvir alguns dos sambas que marcaram este tempo, de uma beleza impar e eternos como: "A Razão dá-se a quem tem", "Assim, sim", "Ando cismado", "Boa Viagem", "Deus sabe o que faz", "Dona do lugar", "Pra me livrar do mal", "Uma Jura que eu fiz", entre outras...

A Deixa Falar foi um capítulo à parte e especial da vida de Ismael Silva. Os amigos do Estácio já tinham o hábito de se reunir no Carnaval e saírem perambulando pelas ruas da cidade, rumo à Praça XI, em torno de um bloco de sujos. Mas foi em 1928 que eles inovaram e criaram aquela que é considerada a primeira Escola de Samba, adaptando o samba aos desfiles carnavalescos, num andamento mais rápido e introduzindo novos instrumentos como o surdo de marcação, ideia atribuída a Bide, um dos fundadores, e a cuíca.

Em mais um de seus depoimentos, Ismael Silva registrou que foi ele quem inventou este nome "Escola de Samba", atribuído segundo ele, à existência da Escola Normal, de formação de professores,  no bairro do Estácio. Ele dizia, "é daqui do Estácio que saem os professores e por isso somos os professores do samba". A verdade é que enquanto a elite carioca desfilava em carros enfeitados pelas avenidas da cidade, nos dias de carnaval, o povão se divertia na Praça XI. E este povão era muitas vezes perseguido pela polícia, cujo esporte era prender pobre e desocupado. Mas com a organização em bloco e depois escola de samba, este povo foi ganhando moral e fez surgir outras agremiações na esteira da Deixa Falar, que saia de Vermelho e Branco, cores do América Footbal Clube, que tinha sua sede também próxima ao Estácio e com muitos torcedores no bairro,   na época .

Uma pena que a Deixa Falar tenha desfilado apenas de 1928 a 1931... em 1932 seus diretores a transformaram em Rancho, ano em que foi organizado o primeiro concurso de Escolas de Samba. Humberto M. Franceshi relata em seu livro "Samba de Sambar do Estácio" que a transformação da Deixa Falar em Rancho foi uma proposital invasão de estranhos em sua diretoria, que teria sido promovida por gente ligada ao Governo Vargas, pós revolução de 30. Não creio. É muita forçação de barra. Penso que como os Ranchos tinham muito mais moral e prestígio, a diretoria tentou se organizar como tal... mas foi um fracasso e a Deixa Falar ficou na estrada como um fato histórico...

Para saber mais sugiro ler o excelente livro "As Escolas de Samba do Rio de Janeiro" de Sérgio Cabral. 

Um abraço e até a próxima.