quarta-feira, 23 de março de 2016

Não só um gênio das cordas, mas também um maravilhoso compositor

Tudo bem que já esteja claro que Garoto foi um dos maiores instrumentistas brasileiros. Mas, e suas composições? "Gente Humilde", parece ser a sua mais conhecida canção. Com certeza devemos esta visibilidade a Chico Buarque que, além de ter ajudado Vinícius na produção da letra, gravou a canção em 1970.

Não é habitual aqui no Brasil citar os autores das canções nas rádios. Mas acredito que "Duas contas", muitos conheçam. Só não sabiam que era de Garoto. Para relembrar o leitor, ouçamos, na interpretação de Paulo Bellinati.


Uma de suas mais belas canções e, na minha opinião, a que melhor representa a sua genialidade autoral é "Lamentos no Morro". Vamos ouvir com Raphael Rabello.


Estou entre aqueles que dizem que Garoto influenciou a bossa nova. Goroto faleceu em maio de 1955, mas ouçam, na voz de Luciana Souza, a canção "Sorriu para mim", e percebam como, muito antes do surgimento da Bossa Nova, ele já compunha uma legítima bossa nova.


Muitas outras canções de Garoto mostram sua versatilidade, seu bom gosto em harmonizar acordes e sua inspiração. Entre as minhas preferidas e que , vez por outra, toco, ao lado de meus amigos de grupos de choro, é "Tristezas de um Violão". Paulo Bellinati, que gravou várias das canções de Garoto, me ajuda novamente a mostrar a vocês esta belezura.


Quando a cidade de São Paulo completou seu quarto centenário, em 1954, comemorou com três dias de festas e solenidades. Uma marchinha ficou muito conhecida de todos, de autoria de Garoto e do acordeonista Chiquinho, em homenagem a cidade. Uma gravação de Hebe Camargo - sim ela já era uma artista conhecida nesta época - fez muito sucesso. Vou poupá-los da voz da Hebe e apresentar para vocês uma gravação de 1953, com o próprio Garoto solando no cavaquinho.


Bem, agora meus leitores e leitoras já sabem que o Garoto era mesmo bom, não só como instrumentista , mas também como autor musical.  Vejam o que pensam algumas grandes figuras sobre ele: 

"Garoto é um camarada esperto, ele sabe fazer aqueles encadeamentos, ele acompanha de uma forma que fica mais bonita”. João Gilberto.

“Não havia um instrumento de corda que ele [Garoto] não dominasse à primeira vista. Dizia-se que, numa única canção, Garoto era capaz de alternar violão, guitarra, violão-tenor e cavaquinho, passando de um para o outro sem perder um compasso — e esta não era uma daqueles lendas que os músicos gostam de contar, porque ele costumava fazer isto no auditório da Rádio Nacional”. Depois de chamá-lo de “superviolonista”. Ruy Castro, no livro "Chega de Saudade".

“Cantar com Garoto era o máximo que uma pessoa podia querer”. Silvinha Telles.

“Garoto tinha uma concepção musical diferente, acima da média de seus contemporâneos, bastando esta melodia [“Duas Contas”], com seus saltos inusitados, para comprovar este ponto de vista”. Jairo Severiano, no livro "A Canção no Tempo".

"Incluo Garoto entre os pioneiros da Bossa Nova. Toquei com ele no Clube do Cinema. Nesse dia, ele compôs uma música na hora e denominou-a ‘Noite maravilhosa’”. Garoto foi peça importante. Conheci muito o Garoto, muitíssimo. Gravei muito com o Garoto ao violão. Era considerado o maior violonista brasileiro, foi aos Estados Unidos. (...) Gosto muito das coisas dele”. Tom Jobim

"Quando comecei a estudar violão eu ouvia muita coisa do Garoto. Marcou muito em mim e, afinal, me deixou um estilo também. Em sua época o violão era meio quadrado. Foi ele quem criou esta escola de violão moderno brasileiro, que tocamos hoje. Baden Powell.

E vocês? O que acharam das canções do nosso Anibal Sardinha? Conte pra mim. Fique à vontade para comentar , seguir o blogue e mostrar a seus amigos e amigas. Assim, fazemos a defesa e divulgação do bom choro e do bom samba. Um abraço e até a próxima.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Garoto rouba a cena nos States

Em 1939, Garoto já era suficientemente conhecido e admirado por sua extrema capacidade de tocar, muito bem, diversos instrumentos de corda. Onde se apresentava e, principalmente, para quem ele acompanhava nas rádios e gravações, impressionava sobremaneira. Suas composições e arranjos feitos para o mundo do disco e do rádio, faziam com que todo artista, cantor ou instrumentista, desejasse contar com sua genialidade.

Neste mesmo ano, a cantora Carmen Miranda, após uma apresentação no Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, recebeu convite do empresário norte-americano Lee Schubert para atuar nos Estados Unidos. Chamou-a para jantar e fez a proposta. Na conversa e nos detalhes, Carmen percebeu que seu desejo de levar o Bando da Lua, o conjunto regional que a acompanhava sempre, liderado por Aloísio de Oliveira, não estava, digamos, "no pacote". Já li, em algumas publicações, que o empresário considerou fraco o grupo e chegou a procurar outros músicos, mesmo no Rio, que pudessem acompanhar a cantora em terras estadunidenses. Carmen, de cara, recusou. Como ir sem o pessoal que a acompanhava há 5 anos? 

Mas a época era a da "política da boa vizinhança", projeto do Presidente norte-americano Roosevelt, para impedir a influência europeia na América Latina e garantir a liderança yankee por cá. Creio que, por conta disto, o governo Getúlio Vargas resolveu bancar as despesas de passagens e hospedagens do Bando da Lua, com a desculpa de que todos iriam se apresentar no pavilhão brasileiro da Feira Mundial de Nova York. E o empresário, que não queria o Bando da Lua, teve que engolir o pacote. Assim Carmen e seu conjunto foram para Nova York, onde ficaram por longo tempo, se apresentando, estrelando filmes, comparecendo a programas de rádio e boates, numa frenética e cansativa jornada.

Em cinco meses de estada em Nova York, Ivo Astolfi, violonista do Bando da Lua, comunicou que estaria de volta ao Brasil, abandonando seu posto. Em seguida, Garoto recebia o telegrama de Carmen: "Queridíssimo Garoto, espero que você tenha gostado da ideia de vir para cá e aceite-a, pois esta terra é a melhor do mundo, só estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos que você venha, eu e os rapazes. Abraços da Carmen".

Carmen fez o convite e garantiu que, no mínimo, o ganho dele seria de 200 dólares semanais. Entusiasmado, nosso Garoto interrompeu o trabalho de muito sucesso que fazia no Duo do Ritmo Sincopado, ao lado de Laurindo de Almeida, e partiu. Em 30 de outubro chegou a Nova York, a tempo de participar da apresentação de Carmen e o Bando da Lua, na tal Feira Mundial de Nova York. E antes que o ano findasse, ainda gravaram três discos, pela Decca, de imenso sucesso. Entre as canções estavam: "South American Way"; "Touradas em Madri"; "O que é que a baiana tem?"; "Mamãe eu quero" e "Bambu, bambu".

O Grupo também participou do filme "Down Argentine Way". Olha o nosso Garoto aí na telona gente!...



Garoto estava num mundo novo. O sucesso da Pequena Notável e seu grupo era uma realidade. Logo o grupo fez uma excursão, onde Garoto pode conhecer Chicago, Detroit, Pitsburgh, Saint Louis, Filadélfia e Washington, na qual também foram convidados para uma recepção na Casa Branca. Foram também ao Canadá, o que impressionou Garoto, deslumbrado que ficou com as nevadas de Toronto e as cataratas de Niágara. Nestas viagens interagiu com grandes artistas do jazz como Duke Ellington e Art Tatum.




Em julho do ano seguinte, o grupo ganhou férias e veio ao Brasil. Ao chegarem, Garoto concedeu entrevista a Fernando Lobo, contando as maravilhas da estada nas terras do Tio San, e como agradou por lá, ganhando o apelido de "O Homem dos dedos de ouro". Tinha ele apenas 25 anos. Imaginem. Contou também que conheceu um pianista norte-americano que possuía um um órgão elétrico e que ensinou o músico a tocar "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso. Extasiava-se ao ouvir a canção brasileira tocada naquele instrumento. Contou também que trouxe o que havia de mais moderno, em termos de captação de cordas:  um tal co-reckt.

Em outubro Carmen e o Bando da Lua retornaram aos Estados Unidos. Porém, Garoto decidiu não se juntar a eles. Ao que parece, não concordou com o contrato oferecido, que não permitia voos solos, o que inviabilizava seu sonho de se desprender, vez por outra, de Carmen e mostrar seu talento em apresentações próprias. Melou. Não foi. Ficou frustrado em seu sonho. Ainda mais depois de conhecer a estrutura profissional oferecida por lá, bem superior à do Brasil.

Era isso...Ainda falta mostrar pra vocês muita coisa sobre este genial Garoto. Mas fica para a próxima. Um abraço.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Mas, afinal, quem é este Garoto?

O Garoto a que me refiro chama-se Aníbal Augusto Sardinha. Um paulista nascido em 1915, filho de portugueses, criado numa família super musical, entre pai, tios e irmãos, vários instrumentistas, o que despertou, desde muito cedo, a paixão pelos instrumentos de corda. Logo na infância, estudou música e se apaixonou pela obra de Ernesto Nazareth. Jorge Mello, autor do livro "Gente Humilde, Vida e música de Garoto", conta que , ainda muito menino, numa aula de religião, o seu professor falou pra turma: "Houve um homem, extraordinariamente dotado, que foi enviado por Deus à Terra! Logo ficou conhecido como Jesus de Nazaré".  O professor, vendo que Garoto estava em outro mundo, sem prestar atenção no que ele dizia, perguntou: Aníbal, qual foi o homem extraordinariamente dotado que Deus enviou a Terra?" E Garoto respondeu de pronto: "Foi Ernesto Nazareth."

Com apenas 11 anos, Garoto apareceu no cenário musical tocando banjo e violão num regional. E já no ano seguinte integraria o conjunto de seu irmão Inocêncio, o Conjunto dos Sócios, que apresentava peças de jazz, onde já era chamado de "Moleque do Banjo". Em 1928 participa das apresentações musicais do Salão do Automóvel, promovido pela General Motors, convidado por Canhoto, considerado o mais importante músico paulista da época. Desde então não parou mais de integrar diversos grupos musicais e com o conjunto "Verde-Amarelo", ao lado de Paraguaçu, participa de sua primeira gravação em disco, sob a direção do maestro Francisco Mignone. São os maxixes "Bichinho de Queijo" e "Driblando", ambos de sua autoria, onde faz os solos no banjo. Que menino precoce!

Garoto não tinha mais tempo pra nada e fez suas primeiras excursões com os grupos musicais pelo interior de São Paulo, onde se apresentava não só no banjo. Assim, ia se tornando um multi-instrumentista. Em pouco tempo já tocava, além do banjo que lhe valeu o apelido de "Garoto do Banjo", violão, cavaquinho e bandolim.

Em 1931 começou a atuar em rádios, iniciando pela Educadora Paulista, e passando para a Rádio Cosmos, convidado que foi por Jaime Redondo, para integrar o Regional da emissora que contava também com Aimoré, Atílio, Pingo e Petit. Foi nesta época, que mudou seu apelido, passando a ser conhecido artisticamente como Garoto. Em 1934, com apenas 14 anos, compôs o choro  "Quinze de Julho". Vamos ouvir? Poly é quem o interpreta neste vídeo que achei.


Nesta fase das rádios em São Paulo, passou a ser conhecido de muitos cantores e artistas, que se espantavam com sua versatilidade e excelência na execução de tantos instrumentos. Daí para os discos foi um pulo. Todos queriam Garoto acompanhando e fazendo solos em suas gravações, pelo capricho e criatividade nos arranjos e impecável execução. 

Em 1936, um grupo de artistas que atuava no Rio, foi a São Paulo para uma apresentação no Teatro Santanna. Eram grandes e já conhecidos nomes do rádio carioca.  Silvio Caldas, Nonô, Luís Barbosa e Araci de Almeida. No ensaio, entre os instrumentistas que iriam acompanhar os astros, estava Garoto, ao lado daquele monte de instrumentos e Silvio Caldas comentou com um outro amigo: "Será que ele toca isto tudo?". Provocado, Garoto foi começando a solar várias peças, primeiro no cavaquinho, depois no bandolim e na guitarra havaiana. Finalizou com o violão tenor, impressionando a todos os presentes que não o conheciam ainda. E assim, Garoto e Aimoré foram convidados a integrar o grupo carioca que depois se apresentou em Santos. Da apresentação, surgiu o convite para irem ao Rio fazer uns trabalhos na Rádio Mayrink Veiga. Este degrau impulsionou de vez a carreira de Garoto, que logo gravou, como solista, de sua autoria, "Dolente", atuando na guitarra havaiana. Ouçamos a gravação original, de 1936.


A temporada no Rio durou meses, sempre atuando na Rádio Mayrink Veiga e participando de toda a programação musical da emissora. Lá conheceu Laurindo de Almeida e Gastão Bueno Lobo, segundo Pixinguinha, o introdutor do Banjo no Brasil. Este tempo no Rio rendeu a Garoto muitos contatos e chamadas para se apresentar e para participar de gravações.

De volta a São Paulo, nosso gênio das cordas foi contratado pela Rádio Cruzeiro do Sul, cuja direção musical estava entregue ao maestro Gaó, um excelente arranjador que montou, para a emissora, a Orquestra Columbia, onde Garoto atuou. Nela Garoto era o responsável por tocar todos os instrumentos de corda, inclusive violino, aumentando ainda mais o leque de instrumentos que dominava.

Ainda morando em São Paulo, participou das gravações de vários sambas cantados por Moreira da Silva, pela gravadora Colúmbia, como  "Não sou mais aquele" e "Meu sofrimento". Começou, neste mesmo ano de 1938, a formar um duo com Laurindo de Almeida, que tocava o violão de seis cordas e com Garoto no violão tenor, já um modelo dinâmico, fabricado pela conceituada Del Vecchio. Com Laurindo também acompanhou Carmen Miranda na gravação de "Mulato antimetropolitano" e "Você nasceu pra ser grã-fina". Os chamados para as gravações se sucederam. Gravou com Jararaca e participou das históricas gravações de sucesso de Ary Barroso, tais como " Sem ela", Tabuleiro da Baiana", "Na baixa do Sapateiro" e "Boneca de piche"...nosso Garoto estava em todas. 

Difícil entender como um instrumentista desta envergadura não tenha um reconhecimento como um dos maiores que já tivemos. Hoje é raro ouvirmos falar dele. E como compositor ele é, a meu ver, ainda mais  importante. Suas canções foram as primeiras a utilizar harmonias com acordes dissonantes, tão precisas, lindas e tão adequadamente colocadas, que não tenho dúvida em registrar que inspirou a bossa nova.

Sobre Garoto ainda há muito o que dizer. Garoto não cabe numa só postagem. Na semana que vem vou contar mais sobre ele, e de como ele foi parar nos Estados Unidos, integrando o Bando da Lua, que acompanhou Carmen Miranda por lá.

Um abraço e até a próxima. Fique à vontade para comentar.