O volumoso tráfico de negros, trazidos da África durante séculos, para o trabalho escravo no Brasil, tem sido objeto de muitos estudos e publicações, levando em consideração os mais diversos aspectos. Nesta semana, empreendi um tempo grande em leituras sobre as origens destes negros trazidos para as diversas regiões do Brasil, para trazer pra vocês um pouco deste conhecimento. E quero hoje registrar algumas percepções que se relacionam com o samba e o choro.
Podemos afirmar que os negros trazidos da África eram originários de dois grupos distintos, não só geograficamente falando, mas também referindo-nos a seus hábitos, cultura e religião: os Bantus e os Sudaneses ou oeste-africanos. Igualmente interessante observar, além da origem de onde vieram, para onde foram levados. Vejamos um mapa que separei para o leitor com estes registros:
Os Bantus vieram das regiões que se estendiam desde a costa atlântica africana, de países como Angola, até o Congo e Moçambique e foram levados aos portos do Rio de Janeiro e de Pernambuco. Já os Sudaneses eram originários da Guiné, Costa do Marfim, Benin, Togo, Gana e Nigéria, e foram trazidos em massa para a Bahia. Esta origem, e as diferenças entre as culturas, explica muito, em minha opinião, porque a Bahia e o Rio de Janeiro são tão distintos, no que tange a religiosidade praticada em uma e outra cidade. E é, justo neste ponto, que acabam oferecendo influências diferenciadas para as manifestações musicais dos dias de hoje. E até mesmo explica como surgiram, no Rio, o samba e o choro.
A grosso modo, podemos dizer que o povo vindo de Guiné e região são de cultura religiosa Iorubá. São povos monoteístas de língua nagô, que cultuam o Deus Olorum, e têm os orixás como secundários. O Candomblé, muito presente na Bahia, é um belo exemplo desta unicidade religiosa.
Os Bantos já apresentam outras características. Não falavam uma única língua e sim várias aparentadas e não possuíam uma religiosidade bem unificada, sendo dados a sincretismos com outras manifestações. No Rio, em contato com o catolicismo e o espiritismo, gerou o que conhecemos como Umbanda.
Na passagem do século XIX para o XX, em seguida à Abolição da Escravatura e também da decadência da cultura do café, na região do Vale do Paraíba, um grande contingente de negros bantos se desloca das fazendas para o Rio de Janeiro, visto que lá já não tinham meios de sobrevivência, como ex-escravos e sem trabalho para o sustento. Vinham mesmo a pé, seguindo a estrada de ferro que ligava o Rio a São Paulo, e acabaram por ficar nos bairros de subúrbio carioca, especialmente em Madureira e região. Eram negros de formação rural, bem diferentes dos Iorubás mais urbanos da Bahia.
Cerca de 30 anos antes, chegaram ao Rio também os negros de origem Iorubá, vindos da Bahia. Mas estes vieram de navio, instalando-se na região central da cidade, onde ficava o porto e logradouros próximos. Diferentemente dos bantos das fazendas de café, os iorubás já constituíam uma espécie de classe média em Salvador, e alguns de seus descendentes tinham acesso a livros e ao estudo regular.
Note o leitor, assim como eu percebi, uma diferença de preparo entre os negros que vieram da Bahia e se instalaram na Cidade Nova e os que migraram das fazendas paulistas e se fixaram nos morros suburbanos do Rio. Também o Rio do Centro, essencialmente urbano, era bem diferente do subúrbio, quase uma zona rural, à época. Enquanto os bantos se misturavam aos cariocas rurais, os iorubás abriam seus pequenos comércios ou se empregavam no poder público como nos Correios ou na Guarda Nacional. Alfredo da Rocha Viana, pai de Pixinguinha, um destes baianos , era funcionário da Repartição Geral de Correios e Telégrafos, e Hilária Baptista de Almeida, a famosa tia Ciata, tinha um pequeno comércio no ramo de alimentação que empregava mais que uma dezena de pessoas. Seu marido, João Batista da Silva, que tinha cursado medicina em Salvador, sem ter concluído contudo, era funcionário da Delegacia de Polícia.
Enquanto estes baianos iorubás mantinham seu culto religioso em suas casas, seguindo no Candomblé, os negros bantos iam misturando santos do catolicismo e dogmas do espiritismo, nos terreiros de umbanda do subúrbio. Embora para maioria da população branca do Rio tudo fosse "macumba" e coisa de preto.
Musicalmente, os baianos se inseriram logo no carnaval carioca dos Ranchos, já que eram iniciados em teoria musical e dominavam instrumentos de sopro e corda, liam partituras e executavam polcas, lundus e maxixes com facilidade e excelência na execução. Entre eles, surgiu Pixinguinha, o gênio da raça, que por sua genialidade e beleza de suas composições, ganhou penetração na sociedade carioca e criou o chorinho, a expressão maior da nossa música instrumental.
Um pouco mais tarde, em meados da década de 1920, os bantos começam a aparecer no cenário musical também. Estes, não sendo iniciados em teoria musical, faziam seus batuques nos morros periféricos dos subúrbios do Rio, se organizaram em grupos de percursionistas, introduzindo aqui e ali, cada vez mais novos elementos de ritmo, que acabaram por formar os blocos carnavalescos que deram origem às escolas de samba. Entre seus líderes, Mano Elói, Carlos Cachaça e Carola, na Mangueira, e Paulo Benjamin de Oliveira, que embora nascido no centro em 1901, mudou-se para Oswaldo Cruz, bairro próximo a Madureira, ainda jovem, e formou o bloco Baianinhas, que deu origem a Portela.
No início da década de 1930 já existiam três dezenas de Escolas de Samba nos subúrbios da Central do Brasil. E os cantores do rádio, que começa a ganhar espaço, buscaram conhecer a novidade nos morros, e gravam as composições dos artistas bantos, que acabaram por fixar o samba como uma das maiores expressões da nossa música.
Tudo isto explica as diferenças entre as manifestações musicais do Rio e Janeiro e da Bahia. Um é choro e samba, o outro é batuque e axé. Um é roda de samba e choro, o outro é trio elétrico, Filhos de Gandhi e Olodum. O que importa mesmo é que tudo isso é coisa de preto.
Para saber mais sobre o assunto e muito mais, recomendo a leitura do excelente livro da professora Marília Trindade Barboza, de quem tenho orgulho de ter contato vez por outra, chamado "Coisa de Preto". Ela é também autora de várias obras biográficas como as de Silas de Oliveira, Paulo da Portela e Cartola, essenciais em minha estante.
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