terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A Festa da Penha


Hoje, quando a gente escuta falar da Penha, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, em noticiários, o assunto é violência: Complexo do Alemão, Vila Cruzeiro, tráfico de drogas,  UPP, Adriano Imperador - não o da Grécia é claro, mas o ex-atleta de futebol. Todavia nem sempre foi assim. Lá está a Igreja de Nossa Senhora da Penha da França, no topo de uma grande rocha, que teve um tempo glorioso e especialmente ligado ao samba, nas primeiras décadas do século XX.

Lembro de ter ido, algumas vezes e quando criança,  ao Santuário da Igreja da Penha, numa época de festas, com muita gente, subindo as escadarias famosas, pagando suas promessas...muitas barraquinhas de comidas e venda de velas. O que ficou gravado na minha lembrança foi a magnífica vista. De lá se avistava, ao menos naquela época, desde o Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, até o  Pão de Açúcar, já na zona sul da cidade.

Contam os livros que a igreja começou como uma pequena ermida, erguida pelo proprietário das terras, Capitão Baltazar de Abreu, ainda em 1635, em agradecimento a ter sobrevivido a um eminente ataque de uma cobra. Ele pediu e a Santa ajudou: “Minha Nossa Senhora, valei-me!”. Diz que, do nada,  apareceu um lagarto – de que tamanho seria este bicho? – que teria atacado a cobra e livrado a vida do tal capitão. Com o passar dos tempos, décadas e séculos,  a ermida foi se transformando em igreja e recebendo romeiros de toda a cidade. Inicialmente a festa era num domingo de setembro, mas devido a um grande temporal, foi transferida pra outubro e ficou. Mais do que isso, no lugar de ser apenas no primeiro domingo de outubro, passou a ocorrer em todos os domingos daquele mês. Foi então que se tornou um dos eventos mais importantes do Rio de Janeiro.


Desde 1906, quando passou a ter a aparência que tem até hoje, com seus 365 degraus, atraí milhares de devotos que vão assistir às missas e pagar suas promessas, por graças alcançadas, através da subida, a pé ou de joelhos até o santuário.

Um pouco antes, ainda no século XIX, a presença maior era de portugueses, mas pouco a pouco, os negros foram ocupando os espaços, inicialmente para a prestação de serviços aos visitantes. Eram as baianas que subiam com seus tabuleiros pra oferecer seus quitutes. Roberto Moura descreve até que a famosa Tia Ciata era uma destas negras que não perdiam a festa. Ela e outras baianas ficavam do lado de fora da igreja e, depois das missas, faziam os seus agradecimentos aos seus orixás, pelas vendas...embora nestes tempos, os negros não fossem, digamos, bem aceitos no ambiente. Havia conflitos que espelhavam a realidade social de toda a cidade. Vamos lembrar que a abolição da escravatura se deu em 1888.

As baianas e seus quitutes

De 1879 a 1907, o padre português e abolicionista Ricardo Silva chegou a fazer do local um abrigo de escravos fugidos, tornando a área conhecida como “Quilombo da Penha”. Talvez devamos muito a este padre o fato de a Festa da Penha ter se tornado um reduto do samba. Lembro de já ter lido certa vez uma narrativa do escritor e compositor Nei Lopes sobre ser este padre o criador da Festa da Penha. Foi ele quem trouxe para o Brasil um arquiteto portuga que  reformou a igreja e acabou também construindo o Instituto Oswaldo Cruz.

Mas pra virar reduto de samba não foi tão fácil...em 1918 veio um outro padre que simplesmente proibiu a venda de bebidas alcoólicas na festa, bem como “batuques” e expressões de sincretismo, tentando dar um cunho exclusivamente católico à festa. Eu não vou registrar o nome dele não tá? Se o Padre Ricardo nos ajudou no desenvolvimento cultural, este atrapalhou. Ou melhor, tentou melar a festa, mas as baianas continuaram montando suas barracas e, claro, as rodas de samba rolaram soltas, Graças a Deus.

Sinhô, João da Bahiana, Caninha, Donga, Pixinguinha, Ismael Silva e outros mais marcavam ponto nos domingos de outubro pra mostrar seus sambas. Heitor dos Prazeres, sambista das antigas, registrou num depoimento: “Naquele tempo não tinha rádio, a gente lançava a música na Festa da Penha. Eu só fiquei conhecido a partir da Festa da Penha”. Foi então um dos primeiros canais de divulgação do samba e do sambista. Se o samba agradava na Festa da Penha, fatalmente faria sucesso no Carnaval seguinte.


Ismael Silva subindo as escadas da Penha com seu violão

Claro a repressão não tardou a chegar para acabar com as batucadas e as bebedeiras durante a festa. Mas os negros resistiam, os sambistas faziam da festa uma oportunidade de divulgação de seus sambas, de realização de suas rodas, com seus pandeiros, violões e cavaquinhos. Muita briga, muito conflito e muita prisão se deu então. Mas o sambista persistia por lá bravamente.

E a Festa se transformou, cresceu, não só como reduto de fé, mas também como de resistência cultural e foi citada por grandes compositores em seus sambas, como Noel Rosa e Cartola. Aliás, faço aqui uma brincadeira pra dar um ar interativo ao meu modesto sambabook. Quem lembrar destes sambas vai sugerindo sua inclusão nos comentários pra enriquecer o post.

A escadaria de 365 degraus

Quem quiser saber mais pode - e deve - ler, entre tantos,  o livro Geografia Carioca do Samba, de Luiz Fernando Vianna. Vai la´e lê. Agora é com vcs...

9 comentários:

  1. Transcrevo comentário de Paulo Malela feito pra mim, via e-mail:
    "Eu li e gostei muito ...parabéns.

    Eu não sabia que a festa era um reduto do samba.

    Em 1967, eu tinha 10 anos. Meu pai pegou toda a familia: minha mãe, 2 irmã e eu; colocou num DKW e iniciou uma viagem de Porto Alegre ao Rio de Janeiro.

    Lá no Rio, meu tio nos hospedou em Ramos, e eu dos passeios foi a igreja da Penha.

    Era julho, portanto não tava na época da festa. Mas eu vi devotos subindo de joelhos os pequenos degraus, barraquinhas de santinhos e velas, vendedores de doces e curiosamente 2 alpinistas que escalavam a rocha.

    Lá de cima a vista é muito linda realmente, e curiosamente me mostraram a Ilha do Governador, a qual não conhecemos na época, mas que eu acabei indo morar de 1986 a 1989.

    Muito legal o levantamento histórico que marca o início do blog. Agora eu lembro que tem uma música do Cartola, Festa da Penha que ela fala sobre subir os degraus mas não de joelhos e que ele precisa de um terno.

    Muito bom lembrar destas coisas. Meu tio ainda mora no Rio, na Piedade. É uma figura. Na época ele me levou numa especie de clube que tava iniciando no Rio. Era o Cacique de Ramos, mas isso é outra história.

    Mais uma vez parabéns."

    Eu é que agradeço Paulo, a sua visita. Um grande abraço e volte sempre!

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  2. Esse capitão Abreu era um tantinho mentiroso. Deve ter sido o "largato de mais de metro" que um amigo nosso viu lá no Pântano do Sul. A foto aérea da Penha que você arrumou é tão velha que deve ter sido tirada do Zeppelin, quando ele fazia linha regular para o Rio na década de 1930.
    Aproveito para citar a música "Goiabada cascão", de Wilson Moreira e Nei Lopes, que diz numa estrofe: "Rango de fogão de lenha / Na festa da Penha / Comido com a mão / Já não tem na praça / Mas como era bom".
    Postar um comentário aqui realmente é um drama. É preciso senha, código, licença do coroné, benção do papa... João

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  3. Bela lembrança João, a do samba do Wilson Moreira e letra do Nei Lopes.
    Grato pela paciência de comentar então...e volte na sexta...

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  4. Mesmo sendo carioca da zona sul do Rio, tive a oportunidade de participar de várias festas na Igreja da Penha. Minha mãe é super devota de Nossa Senhora e não perdia a oportunidade de se divertir e sambar (o que ela adora até hoje). Ela também fazia promessas para cada ocasião especial das nossas vidas(vestibular, casamento, batizados, etc), que tínhamos, eu, minhas irmãs e meu pai, que cumprir subindo os 365 degraus da Penha. Naquela época eu achava um absurdo, mas pensando bem, encontrar aquela festança depois da subida, era muito, muito, muito legal!!! Há tempos que não me lembrava destes "causos" e está sendo bem especial ler sobre um assunto que me é tão querido: O Samba. Parabéns!

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  5. Muito grato Trip Time News, não só pela visita,mas também pelo registro do comentário. Estou em Floripa há 30 anos e também me assustava com aquele povo todo pagando promessas quando morava no Rio. A Festa da Penha é citada em dezenas de livros e sambas dos mais variados autores...foi um dos maiores acontecimentos musicais da nossa cidade. Um abração e volte sempre!

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  6. Transcrevo mensagem que recebi de Elias Norberto, por e-mail:

    "Caldas,
    Parabéns pela iniciativa de criar o Blog. Algumas questões me chamaram muito atenção , em razão de guardar relação com a minha história também. Eu morei em Olaria(bairro vizinho da Penha, como sabes), na Ministro Moreira de Abreu –próxima da Invernada de Olaria- e redondeza por muitos anos; e, na época, o Morro do Alemão se limitava às cercanias da Igreja da Penha. Frequentei muito a festa da Penha, que além das barracas de comida, parque de diversões, era também, como sabes, o espaço de muita paquera. Confesso que não conhecia essa relação da Festa da Penha com o samba.
    A propósito da postura de Vargas não podemos esquecer que foi ele quem entregou Olga(mulher de Prestes) aos nazistas, mesmo depois de prender Prestes, que não se curvou diante da ditadura e comandou um fracassado movimento, pois sem apoio popular e de seus antigos companheiros militares. Quem quiser ver pra crer é só assistir ao filme OLGA. O filme For All – O Trampolin da Vitória, cuja expressão deu origem ao forró, mostra o apoio de Vargas aos americanos, emprestando o território brasileiro como base. Chegou, mesmo, a se encontrar com o presidente americano em Natal. Curiosamente reassisti a esses dois filmes recentemente no Canal Brasil(66).
    O nome do teu blog me faz lembrar o lançamento dos sambabooks(João Nogueira e Martinho da Vila). Só que eu, como Portelense e admirador incondicional do Paulinho da Viola, estou aguardando o dele para comprar e tentar tocar as suas canções.
    Saudações Cariocas
    Elias"

    Muito grato pelo comentário irmão. Tudo pertinente. A relação da Festa da Penha com o samba teve seu tempo...digamos que da virada do século 19 pro 20, e até o início da época de ouro do rádio, ali por 1935... antes do rádio era lá que os compositores faziam a prova de seus sambas...

    Um grande abraço

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  7. Prezado pesquisador, o Sr. não colocou as fontes de onde tirou tanta informação. Mas ficou muito bom o texto.

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  8. Olá Cláudio, belo artigo. Você tem em PDF Geografia Carioca do Samba? Se tiver pode enviar por e-mail? contato@csiston.com.br
    Obrigada.

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