A você que me visita com regularidade registro mais um agradecimento. Nesta semana estou sem as mesmas condições de postagens anteriores, mas faço questão de agradecer sua visita e deixar um recado pra todo o mundo do samba e do choro. Nesta terça, dia 28 de maio, é o dia de homenagear Cyro Monteiro mais uma vez. É que ele faria 100 anos, caso ainda tivéssemos o privilégio de tê-lo entre nós.
Parabéns Formigão!!!
Deixo aqui pra vocês o áudio do show "Teleco Teco, opus nr. 1", gravado ao vivo, em 1966, no Teatro Opinião, quando o nosso Cyro, ao lado de Dilermano Pinheiro, apresentou o show musical, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, com direção de Armando Costa.
Boa semana a todos, com a bênção do nosso Formigão! E até a próxima.
Como prometido, hoje vou contar algumas das muitas histórias e fatos que rolaram no Café Nice. E já começo corrigindo uma informação da última postagem. O Café Nice ficou aberto até o ano de 1954. Eu sou muito ruim de soma...se foram 26 anos de funcionamento e inaugurou em 1928, não poderia ser até 1946.
Qualquer integrante da cadeia musical da época, desde compositores, cantores, instrumentistas, arranjadores, passando por melodista, letristas e chegando aos "comprositores", todos frequentavam o ambiente, para arranjar alguma fama, gravar um disco ou pertencer ao corpo de músicos de uma das rádios que "bombavam" naqueles tempos. As coisas se davam às claras, mas também , às escuras, com os interessados negociando parcerias, e até mesmo roubando ideias...
Certa vez Nestor de Holanda, aliás autor do livro sobre o Café Nice, mas que também era jornalsita e letristas de vários sambas e marchinhas de carnaval, teve uma ideia que achou brilhante e convidou seu parceiro Haroldo Lobo para conversar sobre o assunto no Nice. Ao se encontrarem mandou logo para o parceiro: rapaz, o que me diz da ideia "quem tem culpa tem medo"? Estava eufórico. Haroldo também gostou mas logo advertiu Nestor: "a ideia é ótima, mas vamos falar bem baixinho que as paredes do Nice têm ouvidos". O receio era de que alguém ouvisse e roubasse o tema pra fazer algum samba. Resolveram então tomar uns cafezinhos e depois irem até a sede da SBAT - Sociedade Brasileira de Autores Teatrias, para então, numa de suas salas, trabalharem a canção. Chegando lá, logo na entrada, toparam com Zé da Zilda, outro compositor de sucesso, que fez questão de mostrar a dupla, uma nova marchinha que estava compondo para o carnaval e cantou: "Quem tem culpa tem medo..." perguntado como teve a ideia, disse logo, que tinha sido um pobre velhinho que tinha vindo do Café Nice e lhe trouxe o tema...e falou: "eu até dei 20 cruzeiros pra ele porque achei fantástico"...E não é que as paredes do Nice tinham mesmo ouvidos?
Alguns sambas que ficaram famosos foram produzidos lá mesmo no Café Nice. Almirante conta que o célebre samba "Coração", de Noel Rosa, surgiu numa mesa em que estavam os colegas de medicina do poeta da Vila, vindos de uma aula de anatomia. E deu no que deu: O samba anatômico
Coração (Samba anatômico)
Coração Grande órgão propulsor Transformador do sangue venoso em arterial Coração Não és sentimental Mas entretanto dizem Que és o cofre da paixão Coração Não estás do lado esquerdo Nem tampouco do direito Ficas no centro do peito - eis a verdade! Tu és pro bem-estar do nosso sangue O que a casa de correção É para o bem da humanidade
Coração De sambista brasileiro Quando bate no pulmão Lembra a batida do pandeiro Eu afirmo Sem nenhuma pretensão Que a paixão faz dor no crânio Mas não ataca o coração
Conheci Um sujeito convencido Com mania de grandeza E instinto de nobreza Que, por saber Que o sangue azul é nobre Gastou todo o seu cobre Sem pensar no seu futuro Não achando Quem lhe arrancasse as veias Onde corre o sangue impuro Viajou a procurar De norte a sul Alguém que conseguisse Encher-lhe as veias Com azul de metileno Pra ficar com sangue azul
No carnaval do ano de 1944, estavam no Nice o genial sambista Geraldo Pereira e seu amigo Roberto Martins, quando aparece a mulher de Roberto fantasiada de baiana, e ele a apresenta ao sambista: "Olha,Geraldo, a própria falsa baiana". Meses depois Geraldo Pereira apresentava ao amigo a canção que faz sucesso até hoje. Ouçamos Roberta Sá e Roberto Silva numa bela versão de Falsa Baiana.
Neste mesmo carnaval fez muito sucesso a composição "Atire a primeira pedra", de Ataulfo Alves e Mário Lago. Mário , por sinal, voltava ao Rio num dia de Carnaval, depois de cumprir afazeres em São Paulo e logo que chegou foi direto ao Café Nice e encontrou o amigo mineiro na maior alegria: "Estamos na boca do povo novamente parceiro" , disse Ataulfo já numa euforia que não era habitual. O tempo passou e este ficou na história como o maior pilequinho do Ataulfo, segundo Mário Lago.
Augusto Vasseur era pianista e professor de música requisitado nos anos 20 e 30 do século passado. Também frequentava o Café Nice e, em tempos de grana curta, sabedor do grande mercado que era o local, chegava cedo, sentava numa mesinha, munido de lápis e papel, alguns cadernos com pentragamas e esperava o mercado abrir. Logo chegava algum personagem necessitando seus préstimos. Por partitura, cobrava 10 cruzeirinhos por peça. Mas se a empreitada era mais complexa, como num arranjo mais elaborado ou mesmo numa orquestração, os valores eram negociados. Assim como Augusto, outros grandes músicos como Pixinguinha, Benedicto Lacerda, Guerra Peixe e Raul de Barros também faziam das mesas do Nice, seus escritórios. Sempre haveria alguém como Lamartine Babo, cheio de ideias prontas na cabeça, mas que, de música, nada entendiam. Era hora de "faturar". O preço era justo e agradava quem pagava e quem recebia, regulado pelas forças do velho mercado, onde eram consideradas a necessidade, a pressa e a importância do cliente.
Um dos melhores sambistas brasileiros - outro que completa o centenário neste 2013 - Wilson Baptista, pensou em fazer um livro de suas memórias cujo título seria exatamente "Café Nice". Foi lá que ele combinou algumas parcerias verdadeiras e vendeu muito samba para parceiros que entravam apenas com o nome e a grana. Extremamente produtivo, sabe-se hoje que Wilson Baptista compôs mais de 700 músicas, muitas destas em parcerias negociadas no Nice, por um terno novo, um chapéu incrementado ou mesmo noites em hotéis por temporada, já que Wilson jamais teve um emprego formal, viveu apenas de direitos autorais, arrecadados diretamente por ele de seus "parceiros", muitos estranhos ao meio musical.
Registro uma canção feita pela grande Wilson Baptista sobre o Café Nice e gravada por Nélson Gonçalves. Ele diz tudo na letra simples e inspirada:
Ainda estou lendo o delicioso livro de Nestor de Holanda. A cada capítulo descubro excelentes histórias vividas pelo autor, naqueles tempos áureos de Café Nice...Os personagens vão passando e deixando suas marcas...outras histórias , por certo, estarão aqui no blogue. Um abraço e até a próxima.
Considero que a música brasileira de que trato aqui no blogue - bem entendidos, o samba e o choro - teve início na metade do século XIX, no Rio de Janeiro, através da flauta e das polcas nacionalizadas de Anacleto de Medeiros, dos tangos de Ernesto Nazareth, dos choros iniciais de Zequinha de Abreu e dos "corta-jacas" da fabulosa Chiquinha Gonzaga. Até então, o que e se ouvia e se apresentava naquelas primeiras confeitarias e cafés da Cidade Maravilhosa era música importada da Europa.
Segundo muitos livros, já no século XX, ali pelos anos 20, os maxixes foram dando lugar aos primeiros sambas de Sinhô, Pixinguinha, João da Baiana e Caninha. Respeitando muito quem considera estes os primeiros sambas, permito-me registrar que, apesar da importância destes geniais precursores, entendo que o pessoal do bairro do Estácio foi quem começou a fazer o samba urbano que hoje conhecemos. Foi com o batuque e as linhas percursivas de Ismael Silva, Bide, Armando Marçal, todos da Escola de Samba Deixa Falar, e mais o pessoal de Mangueira e Oswaldo Cruz, como Cartola, Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, que o samba deixou de ser maxixe. Note o leitor que eu considero "Pelo telefone" ainda um maxixe e não um samba.
Em pouco tempo, com o desenvolvimento do rádio e, principalmente, com o cumprimento da lei de Getúlio Vargas, que obrigava a quem se utilizava da música comercialmente pagar direitos autorais, foi que a música e o samba passaram a valer a pena, a render alguma grana. Isto se deu em 1931, abrindo um enorme mercado para cantores, instrumentistas e compositores. A década de 1930 foi a que consolidou o interesse do povo pelos sambas tocados nas diversas rádios cariocas. E este mercado foi crescendo. O interesse em se tornar compositor, autor dos sambas, para , quem sabe, ter suas obras executadas nas emissoras de rádio, fez acontecer um mercado de compra/venda de sambas e parcerias em canções que surgiam a todo instante nas ruas do Rio.
O livro "Um certo Geraldo Pereira", biografia do sambista, de autoria de Alice Duarte, Eulcinea Nunes, Francisco Duarte e Nélson Sargento, dá uma excelente ideia de como funcionava este mercado. Eram 3 núcleos básicos, classificados segundo seu poder aquisitivo e geografia de locais frequentados. No primeiro e mais humilde, estavam os frequentadores da Praça Tiradentes, que o sempre espirituoso carioca apelidou de "calçada da fome", numa alusão a outra calçada de Hollywood. Buci Moreira, Raul Marques - neste 2013 comemoramos o seu centenário -, Bide, Marçal, Nélson Cavaquinho e Alvaiade - opa, outro que comemoraria 100 anos em novembro próximo - eram, entre outros, assíduos frequentadores da região da Praça Tiradentes. O Café Presidente era o principal boteco onde estes mestres poderiam ser encontrados em seus escritórios, sempre com uma cerveja gelada e umas canas entre os lápis e papéis. Buscavam apresentar seus sambas ali mesmo perto, tentando emplacar algum samba numa revista apresentada nos Teatros Carlos Gomes, Recreio e João Caetano.
Quando não conseguiam, iam aos bailes das gafieiras próximas como a Estudantina, a Tupi e a Soboney, e tentavam mostrar suas obras aos maestros e líderes dos conjuntos musicais, para serem ali mesmo executadas, embalando os corpos nas danças de salão da época. Quem não sabia escrever a partitura de seu samba- e a maioria não tinha noção de como colocar as notas e os tempos nos pentagramas - pedia que os instrumentistas escrevessem pra eles. E nestas oportunidades, começaram a surgir também os intermediários, aqueles que tinham trânsito com os cantores das rádios e demais compositores.
E onde estavam estes outros compositores? Ficavam um pouco mais adiante da Praça Tiradentes, na Rua Gonçalves Dias, no Café Papagaio, na já citada aqui no blogue Confeitaria Colombo. Este pessoal que frequentava esta região intermediária, já não era assim totalmente desprovido de grana ou instrução. Por exemplo, neste grupo estavam grandes nomes como Lamartine, Noel Rosa, Braguinha, Custódio Mesquita e Alberto Ribeiro, entre outros.
Mas onde acontecia o "leva e traz", onde rolavam as grandes negociações musicais era ainda mais à frente. Na Avenida Rio Branco, mais exatamente na Casa Nice, que abriu suas portas em 1928 e funcionava com três ambientes: um mais reservedo e bacaninha, com mesas forradas e cadeiras estofadas; um outro menos sofisticado com cadeiras de palhinha e mesas com tampo de mármore, onde se tomava chá com torradas, sorvia-se um bom café e média com pão e manteiga, e um terceiro, já na calçada, com cadeiras de vime, onde o pessoal fazia pequenas refeições e tomava uma bebida. Mas foi o ambiente do café que ficou famoso e mudou até o nome do estabelecimento: de Casa Nice, passou a ser o faladíssimo Café Nice.
Certamente o leitor já ouviu este samba de Artúrio Reis e Monalisa, "Memórias do Café Nice", gravado já em 1975, mas que fez grande sucesso na voz de Nélson Gonçalves nos anos 80.
O que tem de história este Café Nice não cabe numa só postagem. Mas imagine um local onde, durante 26 anos - ficou aberto até 1946 - vários e vários jornalistas, cantores, compositores, instrumentista e poetas "batiam ponto", trocando ideias, resolvendo os problemas cotidianos da vida e, principalmente, comercializando arranjos, letras, melodias e enriquecendo a música popular brasileira. Mas cá pra nós, o lugar ficava numa zona carioca privilegiada. Certamente foi por sua localização estratégica que ganhou a preferência de todo meio artístico musical. Jairo Severiano é outro historiador da nossa música e, em seu livro "Uma História da Música Popular Brasileira" nos conta que, num raio de 600 metros do Café Nice, estavam a Galeria Cruzeiro, o Hotel Avenida, o Teatro Municipal, cinemas da Cinelândia, as redações dos periódicos O Cruzeiro, O Globo, Jornal do Brasil e Diário Carioca, as editoras musicais Vitale e Mangione, a gravadora Continental, além dos estúdios de gravação da Odeon. É mole?
Na semana que vem vou lhes contar algumas das mais curiosas histórias ocorridas no Café Nice, recolhidas em diversos livros, entre eles o raríssimo "Memórias do Café Nice - subterrâneos da música popular e da vida boêmia do Rio de Janeiro", do jornalista Nestor de Holanda. Aguardem, um grande abraço e até lá.