domingo, 19 de maio de 2013

Algumas histórias do Café Nice

Como prometido, hoje vou contar algumas das muitas histórias e fatos que rolaram no Café Nice. E já começo corrigindo uma informação da última postagem. O Café Nice ficou aberto até o ano de 1954. Eu sou muito ruim de soma...se foram 26 anos de funcionamento e inaugurou em 1928, não poderia ser até 1946.

Qualquer integrante da cadeia musical da época, desde compositores, cantores, instrumentistas, arranjadores, passando por melodista, letristas e chegando aos "comprositores", todos frequentavam o ambiente, para arranjar alguma fama, gravar um disco ou pertencer ao corpo de músicos de uma das rádios que "bombavam" naqueles tempos. As coisas se davam às claras, mas também , às escuras, com os interessados negociando parcerias, e até mesmo roubando ideias...

Certa vez Nestor de Holanda, aliás autor do livro sobre o Café Nice, mas que também era jornalsita e letristas de vários sambas e marchinhas de carnaval, teve uma ideia que achou brilhante e convidou seu parceiro Haroldo Lobo para conversar sobre o assunto no Nice. Ao se encontrarem mandou logo para o parceiro: rapaz, o que me diz da ideia "quem tem culpa tem medo"? Estava eufórico. Haroldo também gostou mas logo advertiu  Nestor: "a ideia é ótima, mas vamos falar bem baixinho que as paredes do Nice têm ouvidos". O receio era de que alguém ouvisse e roubasse o tema pra fazer algum samba. Resolveram então tomar uns cafezinhos e depois  irem até a sede da SBAT - Sociedade Brasileira de Autores Teatrias, para então, numa de suas salas, trabalharem a canção. Chegando lá, logo na entrada, toparam com Zé da Zilda, outro compositor de sucesso, que fez questão de mostrar a dupla, uma nova marchinha que estava compondo para o carnaval e cantou: "Quem tem culpa tem medo..." perguntado como teve a ideia, disse logo, que tinha sido um pobre velhinho que tinha vindo do Café Nice e lhe trouxe o tema...e falou: "eu até dei 20 cruzeiros pra ele porque achei fantástico"...E não é que as paredes do Nice tinham mesmo ouvidos?

Alguns sambas que ficaram famosos foram produzidos lá mesmo no Café Nice. Almirante conta que o célebre samba "Coração", de Noel Rosa, surgiu numa mesa em que estavam os colegas de medicina  do poeta da Vila, vindos de uma aula de anatomia. E deu no que deu:  O samba anatômico



Coração (Samba anatômico)

Coração
Grande órgão propulsor
Transformador do sangue venoso em arterial
Coração
Não és sentimental
Mas entretanto dizem
Que és o cofre da paixão
Coração
Não estás do lado esquerdo
Nem tampouco do direito
Ficas no centro do peito - eis a verdade!
Tu és pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade
Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Lembra a batida do pandeiro
Eu afirmo
Sem nenhuma pretensão
Que a paixão faz dor no crânio
Mas não ataca o coração
Conheci
Um sujeito convencido
Com mania de grandeza
E instinto de nobreza
Que, por saber
Que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
Sem pensar no seu futuro
Não achando
Quem lhe arrancasse as veias
Onde corre o sangue impuro
Viajou a procurar
De norte a sul
Alguém que conseguisse
Encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul

No carnaval do ano de 1944, estavam no Nice o genial sambista Geraldo Pereira e seu amigo Roberto Martins, quando aparece a mulher de Roberto fantasiada de baiana, e ele a apresenta ao sambista: "Olha, Geraldo, a própria falsa baiana". Meses depois Geraldo Pereira apresentava ao amigo a canção que faz sucesso até hoje. Ouçamos Roberta Sá e Roberto Silva numa bela versão de Falsa Baiana.



Neste mesmo carnaval fez muito sucesso a composição "Atire a primeira pedra", de Ataulfo Alves e Mário Lago. Mário , por sinal, voltava ao Rio num dia de Carnaval, depois de cumprir afazeres em São Paulo e logo que chegou foi direto ao Café Nice e encontrou o amigo mineiro na maior alegria: "Estamos na boca do povo novamente parceiro" , disse Ataulfo já numa euforia que não era habitual. O tempo passou e este ficou na história como o maior pilequinho do Ataulfo, segundo Mário Lago.

Augusto Vasseur era pianista e professor de música requisitado nos anos 20 e 30 do século passado. Também frequentava o Café Nice e, em tempos  de grana curta, sabedor do grande mercado que era o local, chegava cedo, sentava numa mesinha,  munido de lápis e papel, alguns cadernos com pentragamas e esperava o mercado abrir. Logo chegava algum personagem necessitando seus préstimos. Por partitura, cobrava 10 cruzeirinhos por peça. Mas se a empreitada era mais complexa, como num arranjo mais elaborado ou mesmo numa orquestração, os valores eram negociados. Assim como Augusto, outros grandes músicos como Pixinguinha, Benedicto Lacerda, Guerra Peixe e Raul de Barros também faziam das mesas do Nice, seus escritórios. Sempre haveria alguém como Lamartine Babo, cheio de ideias prontas na cabeça, mas que, de música,  nada entendiam. Era hora de "faturar". O preço era justo e agradava quem pagava e quem recebia, regulado pelas forças do velho mercado, onde eram consideradas a necessidade, a pressa e a importância do cliente.

Um dos melhores sambistas brasileiros - outro que completa o centenário neste 2013 - Wilson Baptista, pensou em fazer um  livro de suas memórias cujo título seria exatamente "Café Nice". Foi lá que ele combinou algumas parcerias verdadeiras e vendeu muito samba para parceiros que entravam apenas com o nome e a grana. Extremamente produtivo, sabe-se hoje que Wilson Baptista compôs mais de 700 músicas, muitas destas em parcerias negociadas no Nice, por um terno novo, um chapéu incrementado ou mesmo noites em hotéis por temporada, já que Wilson jamais teve um emprego formal, viveu apenas de direitos autorais, arrecadados diretamente por ele de seus "parceiros", muitos  estranhos ao meio musical.

Registro uma canção feita pela grande Wilson Baptista sobre o Café Nice e gravada por Nélson Gonçalves. Ele diz tudo na letra simples e inspirada:




Ainda estou lendo o delicioso livro de Nestor de Holanda. A cada capítulo descubro excelentes histórias vividas pelo autor, naqueles tempos áureos de Café Nice...Os personagens vão passando e deixando suas marcas...outras histórias , por certo, estarão aqui no blogue. Um abraço e até a próxima.

4 comentários:

  1. O samba do Noel sobre o coração ilustra bem o que voi dito pelo blogue em postagem anterior, era ainda mais maxixe do que samba. Quanto a ser anatômico, desde que chegou às ruas chamou a atenção sobre as funções trocadas do pulmão e do coração, levando muita gente a dizer que foi uma sorte o Noel ter virado sambista em vez de médico. Não sei se Noel seria um bom médico, mas posso afirmar com convicção que foi um grande sambista, para sorte de todos nós, doentes ou sãos.

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  2. Gosto muito das historias do Café Nice,meu pai foi gerente do Nice de 1947 até 1954.

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    1. Meu Caro João Lopes,
      Primeiramente registro o agradecimento pela visita. E para usar uma expressao do Odorico Paraguaçu, segundamente, imagino quantas histórias você deve ter escutado em casa, ainda quentinhas, saídas do forno, do Café Nice. A grande referência que tenho é o livro do Nestor de Holanda, qu é uma delícia, não só pelos causos, mas também pela forma como escrevia aquele escritor jornalista. Por favor fique à vontade para constar-nos algumas de sua lembrança. Um grande abraço e volte sempre

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  3. Gostaria de adquirir o livro, onde posso compra-lo?

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