quarta-feira, 8 de maio de 2013

Café Nice: A Bolsa de Valores do samba na "época de ouro"

Considero que a música brasileira de que trato aqui no blogue - bem entendidos, o samba e o choro -  teve início na metade do século XIX, no Rio de Janeiro, através da flauta e das polcas nacionalizadas de Anacleto de Medeiros, dos tangos de Ernesto Nazareth, dos choros iniciais de Zequinha de Abreu e dos "corta-jacas" da fabulosa Chiquinha Gonzaga. Até então, o que e se ouvia e se apresentava naquelas primeiras confeitarias e cafés da Cidade Maravilhosa era música importada da Europa.

Segundo muitos livros, já no século XX, ali pelos anos 20, os maxixes foram dando lugar aos primeiros sambas de Sinhô, Pixinguinha, João da Baiana e Caninha. Respeitando muito quem considera estes os primeiros sambas, permito-me registrar que, apesar da importância destes geniais precursores, entendo que o pessoal do bairro do Estácio foi quem começou a fazer o samba urbano que hoje conhecemos. Foi com o batuque e as linhas percursivas de Ismael Silva, Bide, Armando Marçal, todos da Escola de Samba Deixa Falar,  e mais o pessoal de Mangueira e Oswaldo Cruz, como Cartola, Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, que o samba deixou de ser maxixe. Note o leitor que eu considero "Pelo telefone" ainda um maxixe e não um samba.

Em pouco tempo, com o desenvolvimento do rádio e, principalmente, com o cumprimento da lei de Getúlio Vargas, que obrigava a quem se utilizava da música comercialmente pagar direitos autorais, foi que a música e o samba passaram a valer a pena, a render alguma grana. Isto se deu em 1931, abrindo um enorme mercado para cantores, instrumentistas e compositores. A década de 1930 foi a que consolidou o interesse do povo pelos sambas tocados nas diversas rádios cariocas. E este mercado foi crescendo. O interesse em se tornar compositor, autor dos sambas, para , quem sabe,  ter suas obras executadas nas emissoras de rádio, fez acontecer um mercado de compra/venda de sambas e parcerias em canções que surgiam a todo instante nas ruas do Rio.

O livro "Um certo Geraldo Pereira", biografia do sambista, de autoria de Alice Duarte, Eulcinea Nunes, Francisco Duarte e Nélson Sargento,  dá uma excelente ideia de como funcionava este mercado. Eram 3 núcleos básicos, classificados segundo seu poder aquisitivo e geografia de locais frequentados. No primeiro e mais humilde, estavam os frequentadores da Praça Tiradentes, que o sempre espirituoso carioca apelidou de "calçada da fome", numa alusão a outra calçada de Hollywood. Buci Moreira, Raul Marques - neste 2013 comemoramos o seu centenário -, Bide, Marçal, Nélson Cavaquinho e Alvaiade - opa, outro que comemoraria 100 anos em novembro próximo - eram, entre outros, assíduos frequentadores da região da Praça Tiradentes. O Café Presidente era o principal boteco onde estes mestres poderiam ser encontrados em seus escritórios, sempre com uma cerveja gelada e umas canas entre os lápis e papéis. Buscavam apresentar seus sambas ali mesmo perto, tentando emplacar algum samba numa revista apresentada nos  Teatros Carlos Gomes, Recreio e João Caetano.

Quando não conseguiam, iam aos bailes das gafieiras próximas como a Estudantina, a Tupi e a Soboney, e tentavam mostrar suas obras aos maestros e líderes dos conjuntos musicais, para serem ali mesmo executadas, embalando os corpos nas danças de salão da época. Quem não sabia escrever a partitura de seu samba- e a maioria não tinha noção de como colocar as notas e os tempos nos pentagramas - pedia que os instrumentistas escrevessem pra eles. E nestas oportunidades, começaram a surgir também os intermediários, aqueles que tinham trânsito com os cantores das rádios e demais compositores.

E onde estavam estes outros compositores? Ficavam um pouco mais adiante da Praça Tiradentes, na Rua Gonçalves Dias, no Café Papagaio, na já citada aqui no blogue Confeitaria Colombo. Este pessoal que frequentava esta região intermediária, já não era assim totalmente desprovido de grana ou instrução. Por exemplo, neste grupo estavam grandes nomes como Lamartine, Noel Rosa, Braguinha, Custódio Mesquita e Alberto Ribeiro, entre outros.

Mas onde acontecia o "leva e traz", onde rolavam as grandes negociações musicais era ainda mais à frente. Na Avenida Rio Branco, mais exatamente na Casa Nice, que abriu suas portas em 1928 e funcionava com três ambientes: um mais reservedo e bacaninha, com mesas forradas e cadeiras estofadas; um outro menos sofisticado com cadeiras de palhinha e mesas com tampo de mármore, onde se tomava chá com torradas, sorvia-se um bom café e média com pão e manteiga, e um terceiro, já na calçada, com cadeiras de vime, onde o pessoal fazia pequenas refeições e tomava uma bebida. Mas foi o ambiente do café que ficou famoso e mudou até o nome do estabelecimento: de Casa Nice, passou a ser o faladíssimo Café Nice.

Certamente o leitor já ouviu este samba de Artúrio Reis e Monalisa, "Memórias do Café Nice",  gravado já em 1975, mas que fez grande sucesso na voz de Nélson Gonçalves nos anos 80.



O que tem de história este Café Nice não cabe numa só postagem. Mas imagine um local onde, durante 26 anos - ficou aberto até 1946 - vários e vários jornalistas, cantores, compositores, instrumentista e poetas "batiam ponto", trocando ideias, resolvendo os problemas cotidianos da vida e, principalmente, comercializando arranjos, letras, melodias e enriquecendo a música popular brasileira. Mas cá pra nós, o lugar ficava numa zona carioca privilegiada. Certamente foi por sua localização estratégica que ganhou a preferência de todo meio artístico musical. Jairo Severiano é outro historiador da nossa música e, em seu livro "Uma História da Música Popular Brasileira" nos conta que, num raio de 600 metros do Café Nice, estavam a Galeria Cruzeiro, o Hotel Avenida, o Teatro Municipal, cinemas da Cinelândia, as redações dos periódicos O Cruzeiro, O Globo, Jornal do Brasil e Diário Carioca, as editoras musicais Vitale e Mangione, a gravadora Continental, além dos estúdios de gravação da Odeon. É mole?

Na semana que vem vou lhes contar algumas das mais curiosas histórias ocorridas no Café Nice, recolhidas em diversos livros, entre eles o raríssimo "Memórias do Café Nice - subterrâneos da música popular e da vida boêmia do Rio de Janeiro", do jornalista Nestor de Holanda. Aguardem, um grande abraço e até lá.

8 comentários:

  1. Grande lembrança, o Café Nice. A Rio Branco já foi a alma do Rio, antes de virar uma rua entupida de carros demais, barulho demais, arranha-céus demais, alma de menos. Um café parecido, que durou até a década de 1970, acho, foi o Simpatia, ao lado da Simpatia Lotérica. Parecido fisicamente, mas sem a importância do Café Nice para a MPB. Gostei também de lembrar do Nestor de Holanda, natural de Vitória de Santo Antão, cuja coluna no saudoso Diário de Notícias eu lia sempre. Como se diz nas histórias em quadrinho, "snif"... Quem vai tirar as flechas do peito do meu padroeiro?

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  2. João, creio que Deus compensou toda esta riqueza cultural colocando os piores políticos à frente dos destinos da cidade. São Jorge não consegue dar conta de tanta sacanagem, como diz o Aldir.
    Ainda tomei alguns chopps no Simpatia e num outro que ficava amis perto da Presidente Vargas, que também tinha cadeiras de vime na calçada e que não lembro mais o nome. Saudade grande.

    Semana que vem eu conto mais...abração João, e grato pela visita, leitura e comentários.

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  3. Aí Cláudio, cantei muito essa música nas rodas de samba em Londrina, mas não sabia a história. Maravilha, grande abraço.

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    1. Pois então Japa...até eu já ouvi vc. cantando esta...vc. vai curtir muito as histórias da próxima postagem...abração e grato pela visita.

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  4. Recebo mensagem via e-mail de minha prima, muito simpática, que transcrevo:
    Claudinho,

    Tenho curtido muito seu blog, além de estar aprendendo muito de forma bastante agradável. Adoro seu poder de síntese.
    bjs
    PrimaVera

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    1. Muitíssimo grato prima. Ter leitores como você me servem de combustível para seguir nas pesquisas e leituras. Um grande beijo e grato pelo carinho.

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  5. Desculpe a minha ignorância, "pelo telefone" é mais ou menos assim: Pelo telefone o chefe da polícia mandou me avisar, que na carioca tem uma roleta para se jogar. E esta música?

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    1. Sim Fredy. Esta música é considerada pela maioria das pessoas como o primeiro samba gravado da história. Particularmente, considero que ainda não é samba e sim um maxixe. Penso que o samba veioum pouco mais tarde, como Ismael, Noel, Bide e Marçal.
      Abraços, amigo, e volte sempre!

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