quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ismael Silva, a matriz do samba carioca

O leitor que gosta de samba, acredito, já deve ter escutado falar muito e diversas vezes  sobre aquele que é considerado por muitos como o primeiro do gênero gravado. A canção "Pelo Telefone", de Donga, foi registrada no final de 1916 e gravada no ano seguinte pela Casa Edson e gera ainda muita polêmica quanto à autoria, uma vez que teria sido uma criação coletiva, concebida nos quintais da casa da Tia Ciata, ambiente frequentado por Pixinguinha, João da Bahiana, Caninha e Sinhô, entre outros, que creio, tenham participado tanto quanto Ernesto dos Santos, o Donga, na produção. O fato é que ela tem registro de composição de Donga e de Mauro de Almeida, um jornalista que seria o letrista.

Polêmicas sobre autoria à parte, estou entre os que  consideram "Pelo Telefone" não um samba, mas um maxixe. O Samba, tal qual ficou conhecido no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo é criação do pessoal do Estácio. E os grandes compositores deste antigo bairro do Rio modificaram aquele maxixe com tamanha maestria, incluindo novos instrumentos de percussão, que a coisa pegou de vez e nasceu o verdadeiro samba. Frequentavam os bares e botecos do Largo do Estácio e da parte baixa do Morro de São Carlos, figuras como Bide, Marçal, Nílton Bastos, Heitor dos Prazeres, Baiaco, Rubens Barcellos, Brancura, Mano Edgar e Ismael Silva e foram os que primeiro produziram sambas, como hoje conhecemos. E é sobre Ismael, este extraordinário sambista,  que hoje coloco um holofote, dos mais potentes, para fazer justiça a sua obra e ao seu pioneirismo.

Sem nenhuma formação musical, Ismael, nascido em 14 de setembro de 1905, em Niterói,  viveu bastante tempo, ao contrário de outros amigos e parceiros do Estácio. Logo aos 3 anos mudou-se com a mãe para o Estácio, no Rio de Janeiro, após a morte de seu pai. Por ter vivido bastante e dada a sua importância para o samba, concedeu diversos depoimentos, muitas vezes um pouco fantasiosos sobre sua trajetória. Certa vez contou que aos sete anos de idade pedia a sua mãe que o colocasse numa escola. Dona Emília dava de ombros por acreditar que estudo era coisa pra branco e que Ismael, negro e pobre, jamais se tornaria um "doutor". Diz então nosso Ismael que matriculou-se sozinho e por conta própria numa escola e se tornou um bom aluno, alfabetizando-se rapidamente. Chegou a concluir o ginasial. Mas aos poucos o samba foi tomando seu tempo e o doutor ficou mesmo pra trás. 

Aos quatorze anos compôs seu primeiro samba, jamais gravado, chamado "Já desisti", cuja letra já mostrava seu gosto pelo jogo e pela malandragem: “Já desisti de mulher / Já desisti do trabalho / Agora só me falta / desistir do baralho”. Nesta época já dominava bem o pandeiro e o tamborim, mas não o violão. 


Acho incrível e uma sorte imensa que todos estes talentosos amigos do Estácio tenham convivido nesta mesma época. Num tempo em que o rádio começava a ter muita audiência e apareciam grandes cantores, ávidos por novas canções para a produção dos programas que surgiam como o do Casé. Um destes cantores tinha um "faro" impressionante para descobrir e fuçar as novidades da cidade. Era Francisco Alves, também o mais popular deles, que frequentava todas as rodas musicais do centro ao subúrbio e acabou chegando ao pessoal do Estácio. Ao ouvir o samba "Me faz carinhos" quis saber logo quem era o autor e, numa época em que compositor nenhum ganhava um centavo por produzir suas canções, chegou a Ismael Silva e propôs comprar a obra. Foi assim que , por 100 mil-réis, Ismael abriu mão da autoria e o samba tornou-se um enorme sucesso, gravado em 1928 pelo Chico Viola. O passo seguinte foi tornar-se parceiro exclusivo de Francisco Alves, apesar de já ter um acordo de parceria com Nilton Bastos.  O esperto cantor não se fez de rogado e topou incluir Nilton Bastos no negócio. Seriam então um trio de compositores.

Já em 1931 estoura nas ruas e no rádio o samba "Se você jurar", até hoje o mais conhecido de Ismael. Não era pra menos, o samba possui uma bela melodia, com notas em intervalos mais longas, aliada a uma característica até então jamais utilizada, que era a segunda parte terminando com acordes que preparavam a volta para a primeira. O tema já era a malandragem: "Se você jurar / que me tem amor / eu posso me regenerar / mas se é para fingir mulher / da orgia assim não vou deixar", gravada pelo duo Chico Viola e Mário Reis. Um grande sucesso que consolidou a parceria e o negócio feito anteriormente.

Lamentavelmente, em setembro deste mesmo ano, morre Nilton Bastos, vitima de uma tuberculose. Tinha apenas 32 anos e o fato deixou nosso Ismael bem triste... pensou até em se mudar do Estácio. Em sua homenagem fez dois sambas: "Ri pra não chorar " e "Adeus". Mas vejam vocês como são as coisas... em substituição a Nilton Bastos, entra no negócio de parcerias de Francisco Alves e Ismael Silva, um jovem poeta da Vila, nada menos que Noel Rosa. Só que este não topou a exclusividade. Mas o que fizeram juntos rendeu maravilhosas páginas da nossa música. Ismael diz que foram 9, mas na real, esmiuçando e pesquisando a obra de Noel, chegamos a 18 sambas, 12 deles assinados também por Francisco Alves.

O leitor pode e deve procurar ouvir alguns dos sambas que marcaram este tempo, de uma beleza impar e eternos como: "A Razão dá-se a quem tem", "Assim, sim", "Ando cismado", "Boa Viagem", "Deus sabe o que faz", "Dona do lugar", "Pra me livrar do mal", "Uma Jura que eu fiz", entre outras...

A Deixa Falar foi um capítulo à parte e especial da vida de Ismael Silva. Os amigos do Estácio já tinham o hábito de se reunir no Carnaval e saírem perambulando pelas ruas da cidade, rumo à Praça XI, em torno de um bloco de sujos. Mas foi em 1928 que eles inovaram e criaram aquela que é considerada a primeira Escola de Samba, adaptando o samba aos desfiles carnavalescos, num andamento mais rápido e introduzindo novos instrumentos como o surdo de marcação, ideia atribuída a Bide, um dos fundadores, e a cuíca.

Em mais um de seus depoimentos, Ismael Silva registrou que foi ele quem inventou este nome "Escola de Samba", atribuído segundo ele, à existência da Escola Normal, de formação de professores,  no bairro do Estácio. Ele dizia, "é daqui do Estácio que saem os professores e por isso somos os professores do samba". A verdade é que enquanto a elite carioca desfilava em carros enfeitados pelas avenidas da cidade, nos dias de carnaval, o povão se divertia na Praça XI. E este povão era muitas vezes perseguido pela polícia, cujo esporte era prender pobre e desocupado. Mas com a organização em bloco e depois escola de samba, este povo foi ganhando moral e fez surgir outras agremiações na esteira da Deixa Falar, que saia de Vermelho e Branco, cores do América Footbal Clube, que tinha sua sede também próxima ao Estácio e com muitos torcedores no bairro,   na época .

Uma pena que a Deixa Falar tenha desfilado apenas de 1928 a 1931... em 1932 seus diretores a transformaram em Rancho, ano em que foi organizado o primeiro concurso de Escolas de Samba. Humberto M. Franceshi relata em seu livro "Samba de Sambar do Estácio" que a transformação da Deixa Falar em Rancho foi uma proposital invasão de estranhos em sua diretoria, que teria sido promovida por gente ligada ao Governo Vargas, pós revolução de 30. Não creio. É muita forçação de barra. Penso que como os Ranchos tinham muito mais moral e prestígio, a diretoria tentou se organizar como tal... mas foi um fracasso e a Deixa Falar ficou na estrada como um fato histórico...

Para saber mais sugiro ler o excelente livro "As Escolas de Samba do Rio de Janeiro" de Sérgio Cabral. 

Um abraço e até a próxima. 

4 comentários:

  1. Interessante saber como começou a história deste rítmo musical q tanto gosto...tenho alguns Cd's de Noel Rosa, vou procurar e ouvir as canções sugeridas....valeu!!!

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    1. Gracinha, grato pela visita ao blog. Fico muito feliz de saber que gostou . O objetivo maior deste espaço é estimular a leitura e audição destes extraordinários sambistas e chorões. No caso das canções de Noel com Ismael, deixei de citar uma de que gosto muto chamada "Pra me livrar do mal".. Busque aí e se precisar me peça que eu dou um jeito de fazer vc. ouvir... Bjs e volte sempre!

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  2. Parabéns meu amor pelo excelente texto ❤

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