O Bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, surgiu no caminho do que era chamado, nos anos 20, de Mata-Porcos, mais ou menos onde hoje é a Rua Frei Caneca. Situado entre os vizinhos bairros do Catumbi, Cidade Nova e Rio Comprido, sobe pelos morros de São Carlos e de Santos Rodrigues. Ali viviam pessoas humildes, operários, comerciários e a camada mais pobre do funcionalismo público federal e distrital.. O comércio era composto de sapateiros, lojas de tecidos, armarinhos, uma fábrica de gelo, um cinema e muitos Bares e Cafés, como o Porta Larga, o Madureira, o do Pavão, o Apolo e o do Compadre.
Era bem no Bar do Compadre que "batiam ponto" vários dos grandes bambas que fizeram a história do samba. Entre seus frequentadores estava o radialista Evaldo Rui, embora morador da Tijuca e que, mais tarde, se tornaria também compositor. Vejamos uma descrição que fez ele à Revista da Música Popular, já em 1954, ao lembrar do Bar do Compadre: "Eram duas portas que davam para a rua do Estácio. Do lado da rua Pereira Franco ficavam as outras três. As mesas eram de mármore e no fundo tinha uma vitrola "ortofônica", com uma imagem de São Jorge acima. Eu me postava diante de suas portas, quase que em todas as tardes porque ali se reuniam os meus ídolos, como Ismael, com seu irrepreensível terno azul marinho, camisa imaculadamente branca e gravata de tricot preta. A seu lado Nílton Bastos, uma das figuras maiores do Café, com seu chapéu de feltro marrom...e eu ficava pensando o que se passava naqueles papos? Deviam estar falando de samba. Aprendi muita coisa com aquelas conversas, como a diferença entre o bom samba, o puro samba e o mau samba, o falso samba."
Note o leitor que, já naquela época, a discussão sobre o samba verdadeiro já rolava. Evaldo Rui não era um qualquer... havia composto canções românticas com Custódio Mesquita e bem mais tarde emplacaria sucessos no carnaval como "Nega Maluca", parceria com Haroldo Lobo. Percebeu que naquelas mesas do Bar do Compadre estavam surgindo sambas novos, perfeitos para serem cantados e dançados enquanto o povo caminhava pelas ruas do bairro, rumo à Praça XI, para brincar no Carnaval.
Alcebíades e Rubem, assíduos frequentadores dos bares e conversas, fundaram em 1925 o bloco carnavalesco "A União faz a força", que saía de seu ponto de origem, no Estácio, com 50 pessoas, mas que na altura do destino final, na Praça XI, já contava com mais de 300 foliões. Foi o embrião da "Deixa Falar", a primeira Escola de Samba, criada já em 1928. A principal novidade foi a adoção de um samba diferente daqueles com que costumavam sair os bloco até então, e a introdução do surdo de marcação, atribuída ao próprio Bide e a cuíca, segundo muitos, introduzida por João Mina. Merece destaque a questão do novo samba.
O musicólogo Carlos Sandroni diferencia este novo padrão de samba em relação ao antigo, pela originalidade de sua sincopação, segundo ele mais rica e livre da influência do maxixe. "No maxixe a síncope está contida dentro de um tempo, enquanto que neste novo samba criado pelo pessoal do Estácio, ela transborda de um tempo para outro", nos relata o maestro Antônio Adolfo, também um estudioso dos primeiros sambas, que gostou muito da explicação dada por Ismael Silva, numa entrevista concedida a Sérgio Cabral, em 1974: "O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava né? Aí a gente começou a fazer assim: bum bum paticumbum prugurundum...".. dizia ele que facilitava muito pro pessoal que saia no bloco...
Bide , consta também, foi quem levou o tamborim pros blocos e pra escola. Foi o primeiro a ser procurado pelo cantor Francisco Alves, a quem apresentou Ismael para formarem as parcerias e os negócios musicais...era sapateiro da Fábrica Bordallo neste tempo em que frequentava o Bar do Compadre. Mas depois dedicou-se somente à música, formando com Armando Marçal uma parceria que rendeu belas canções como "Meu Primeiro Amor", "A primeira Vez", "Que bate fundo é esse?" e "Violão Amigo", entre tantas. Juntos também participaram de inúmeras gravações e shows nas rádios, onde eram requisitados percussionistas.
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Marçal e Bide |
Pena que Armando Marçal tenha falecido cedo. Mas ele se foi fazendo o que mais gostava e sabia, fulminado por um colapso cardíaco em 1947, nos estúdios da RCA Victor. Bom relembrar que Armando iniciou uma geração de ótimos percussionistas da família. Quem não conheceu Nilton Marçal, seu filho, mais conhecido como Mestre Marçal? Mestre de bateria de diversas escolas, cantor, gravou excelentes discos e trabalhou durante algum tempo como comentarista das transmissões de carnaval da TV Globo. Eu mesmo tive o privilégio de falar uma vez com ele ao telefone, quando tive um estúdio de áudio, ali pelos anos 90. Pedi auxílio para um problema com a gravação dos tamborins de um samba enredo de uma escola de samba de Floripa. Estávamos, eu e meu sócio, num nó cego... os ritmistas, apesar de bons na avenida, "amarelaram" no estúdio e a gravação ficou muito ruim...Foi aí que Mestre Marçal generosamente nos ensinou: " Grava você e o seu sócio o desenho dos tamborins e sai dobrando a pista até parecer que sejam mais de dez... vai por mim meu irmão". Foi o que fizemos e deu tudo certo.
E não vamos esquecer que o filho de Mestre Marçal, portanto neto de Armando Marçal, também é um excepcional percursionista. Marçalzinho vive nos Estados Unidos há muito tempo e integrou a Banda que acompanha Pat Metheny, presente em seus inúmeros discos.
Outro talento desta turma do Estácio foi Nilton Bastos. Branco, filho de português, morava na rua Dona Zulmira, no Maracanã, mecânico do Arsenal de Guerra, frequentava o Bar do Apolo, no Estácio, diariamente, além do próprio Bar do Compadre. Era o compositor preferido do cantor Mário Reis, que gravou "O destino Deus é quem dá", e disse que , se não tivesse morrido tão cedo, vítima de uma tuberculose, Nilton Bastos teria sido um dos maiores compositores brasileiros. Mário Reis inclusive atesta que muitos sambas compostos pelo trio Nilton/Ismael/Chico Alves, foram criados, exclusivamente, por Nilton Bastos.
Vale citar ainda Aurélio Gomes, mais um destes bambas que tinha voz possante e foi responsável por puxar, no gogó, os primeiros sambas levados pela Deixa Falar. Bide reconhecia no amigo grande capacidade de improvisar versos, mas brincava dizendo que ele era incapaz de produzir um samba sozinho. Dele e de Baiaco é o grande sucesso "Arrasta a Sandália". Era soldado da Polícia Militar e malandro...espere aí? Seria possível isto...? Bem, podemos dizer que era mais malandro do que soldado, sendo amigo de Baiaco... Oswaldo Vasques, que era rufião da Zona do Mangue e intermediário do comércio de sambas da cidade.
Mais dois malandros pra finalizar... Mano Edgar, que apesar de trabalhar na Fábrica de Cigarros Souza Cruz, era muito mais conhecido como jogador e trapaceiro. Acabou assassinado numa roda de carteado na rua Joaquim Palhares, com apenas 31 anos. Almirante, cantor, radialista e autor de alguns livros afirma que Mano Edgar foi quem inspirou o estribilho do samba "Fita Amarela", um clássico de Noel Rosa.
Terminamos com a figura mais impressionante da malandragem do Estácio. Silvio Fernandes, que apesar de negro, era conhecido como Brancura, por fazer sucesso entre as mulheres brancas que conquistava. Bravo e valentão, sabia como poucos usar a navalha numa briga. Consta como autor de alguns sambas também, como "Deixa esta mulher chorar", sucesso da dupla Francisco Alves e Mário Reis, de 1932.
Para saber mais sobre este pessoal maravilhoso do Estácio eu recomendo, entre outras obras, a leitura do livro "Uma história da música popular brasileira", de Jairo Severiano.
É isto aí amigos e amigas.. Deixe seu comentário para enriquecer ainda mais este espaço. Até a próxima. Abraços